sábado, 16 de julho de 2011

A arte da adaptação

Adaptar-se: eis a sina do ser humano. Parece simples, pois de qualquer maneira a vida é dinâmica e adaptar-se seria algo quase imperceptível, se não fosse exatamente o contrário. Apesar de dinâmica, a vida nos prega peças - ou às vezes somos nós a fazê-lo - e muda-se e, uma vez mais, devemos nos adaptar.

Nessas idas e vindas, acredito já estar me adaptando a adaptar-me. Mudanças de planos se tornaram rotina e a novidade, nova já não é mais. De qualquer forma, criei métodos de adaptação a situações novas que, consciente ou inconscientemente, acabo por praticar. Uma delas é a observação.

No tempo em que morei na Itália, acostumei-me a observar detalhes, caminhar pelas ruas e observar detalhadamente todos os detalhes possíveis, tanto das cidades, arquitetura, como o costume dos cidadãos e das cidadoas. Volta e meia, quando estou sonhando de olhos abertos, ou enxergando com os olhos fechados, sinto-me de volta ao velho mundo, pois relembro muita coisa que, sem esse hábito de escrutínio, recordar-me-não-ia.

E no adaptar-me atual, ou readaptar-me, começo a observar as pessoas que cruzam meu caminho, enquanto vou ao ponto de ônibus, de onde parto para o trabalho diário. Como saio sempre no mesmo horário, percebi que de segunda a sexta cruzo com a mesma moça pelo caminho.

Devo tê-la percebido no segundo ou terceiro dia. Apesar de bonita, não chega a ser estonteante a ponto de atrair todos os olhares dos passantes. O detalhe, porém, que atraiu o meu olhar, não foi nem seu corpo, nem seu rosto, muito menos o pára-choque traseiro (que lá pelo quarto dia eu dei uma espiadinha e não deixa nada a desejar). O que me chamou a atenção foi a barriguinha de fora.

Aquela camiseta curtinha que deixava desprotegida e vulnerável toda aquela região infinda ao redor do umbigo. E, mais abaixo, a calça jeans. Justa.

Assim como a calça, também me considero uma pessoa justa. Mas faria a moça jus a este conto? Não creio. Mas os vastos campos belos e nus da depressão umbilical fazem.

Dizem que a melhor definição do ser humano é esta: um ser que gira ao redor do próprio umbigo. Talvez seja verdade. Mas, nesse caso, comecei a girar ao redor do umbigo dela. Passei a observar a barriguinha todo o dia, como enfeitiçado, como sendo sugado por um buraco - no caso um buraquinho - negro. Fizesse chuva ou sol, não tinha erro: o umbigo ali estava, fitando-me, atraindo-me, bailando durante cinco, seis, no máximo dez segundos, para depois seguir seu rumo, deixando o rastro de um quase e o perfume etéreo do talvez no ar. Além do bumbum sacolejante, a última visão que me sobrava.

Chegou contudo o inverno, o frio, quando como as cebolas, as pessoas se vestem e se despem em camadas, muitas vezes imitando-as inclusive no cheiro. Ou pior. Mas pra isso eu não ligava. Perguntava-me, inquieto, se graças às intempéries do tempo eu seria privado da visão edênica do umbigo. Não, não poderia. Se ele aparecesse, em minha frente, coberto, não saberia como reagir. A loucura batia em minha porta somente em pensar na possibilidade de, um dia, quem sabe, talvez, por acaso, quiçá, aquele umbigo, o umbigo de cada dia, de todo dia, fosse, por fim, vestido, coberto. Seria a morte: o umbigo envolto em sua mortalha, o sucumbir abrupto e inesperado de uma vida destinada a existir. A desilusão, o horror, o desespero. O sentido da vida sumiria por entre os vãos do piercing daquela moça. (Esqueci de comentar do piercing. Era um umbigo com piercing. Impossível, impossível...).

O frio chegou na sexta e passei o final de semana torturando-me nessa dúvida vital, torcendo para que o sol, repentinamente, surgisse, contrariando a lógica ilógica dos meteorologistas. Por fim, na segunda, acordei tremendo de frio e usei, pela primeira vez desde meu retorno à pátria que me pariu, um par de luvas. Era quase impossível caminhar pelas ruas, as pessoas cobriam os rostos de todas as formas possíveis pois não se aguentava os Celsius rondando o zero. Já havia desistido do umbigo, julgando sua proteção, de certa forma, um modo de preservar a detentora de tal formosura e, indiretamente, preservando-o para a posteridade e para o verão, que prometia muito mais além deste belo exemplar de orifício abdominal.

Distraí-me, absorto em minha desolação. Quando levantei a cabeça para atravessar a rua, eis que o vi: o umbigo estava ali! Estava vivo!

A dona encasacada, com luvas, touca, cachecol, botas, mas com o umbigo ali, firme, forte, perfurado e ao ar livre. O êxtase foi tamanho que prometi nunca mais duvidar deste umbigo, que tudo podia, que tudo sabia, que tudo faria. O eterno retorno do umbigo. Algo supra-existencial. Ou quase isso.

No dia seguinte, porém, por razões de forças maiores que as minhas, comecei a ir mais cedo ao trabalho e a única coisa que me resta são os detalhes, aqueles detalhes, aquelas curvas, que perscrutei com tanta adoração, e adorei com tanta devoção que até me assusto. Depois de uns dias, como de praxe, adaptei-me e hoje vivo sem o umbigo. O dela, não o meu. Quando vou ao trabalho diariamente, já não sofro tanto por aquele pequeno objeto de arte vivo. Isto porque, concidência ou não, outro umbigo cruza por mim, neste novo horário. Desta vez sem piercing, mas não menos venerável.

Adaptei-me, novamente. Eis a sina do ser humano.