quinta-feira, 29 de abril de 2010

Às margens do rio Piedra...

Foi no raiar do dia, de óculos escuros protegendo-me da sensação sempre incoveniente da luz solar, que percebi a finitude do ser enquanto humano (bonita essa).

Talvez tenha sido o uísque falsificado. Mas a claridez (!) foi tão nítida e, desculpem a redundância, clara, que pensei 'como não tinha percebido tudo isso antes?'

E tudo se fez inteligível repentinamente. Como se fosse um aleph mental súbito. Todas as peças do quebra-cabeças se encaixaram e desfrutei da sabedoria e do sentimento de onisciência que só os sábios possuem, aquela mansidão nos gestos, economia na fala, a exatidão das palavras, a momentânea percepção de tudo que é, foi e será, sua razão, causa e circunstância, início, meio e fim.

A vontade era escrever tudo aquilo, publicar, ganhar o Nobel de literatura, doar o dinheiro a causas sociais e viver eremita em cavernas como Zaratustra mesmo o fez, com minhas mulheres eremitas ao redor, exultando-nos em intermináveis festas e descansos em remansos, observando do alto de nossa montanha como a vida flui aos que não perceberam o óbvio, que resplandece em nossa face diariamente e por estarmos ocupados não nos damos conta do quê, afinal, acontece nessa coisa a que chamamos vida.

Mas como eu estava dirigindo deixei pra escrever em casa, e duas quadras depois eu já tinha esquecido tudo isso e só queria chegar em casa, dormir, e torcia para que meu estômago resistisse bravamente ao uísque falsificado.

Publicado em 10 de dezembro de 2007

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Corujices

Informo a todos que acabou de nascer Gabriel, meu segundo sobrinho!

















Eta tio coruja!

terça-feira, 27 de abril de 2010

O meu abacateiro

Quando eu era criança, lá na década de 80, morava numa bela cidade chamada Panambi, em uma casa sem muros ou grades, numa esquina, coisa quase impensável no Brasil de hoje. Aliás, a última vez que passei em frente a esta casa, já estava devidamente amurada e gradeada.

Nesta minha feliz época, onde trabalhar era algo distante, muito distante, que só viria a conhecer uma década depois, brincar na rua era algo tão natural como atender um celular no trânsito. Lembro que meus vizinhos Cícero e Alan - onde estarão eles hoje? - tinham um quintal com árvores de cinamomo, onde subiámos para pegar aquelas bolinhas que nos serviam de munição.

Mas no meu quintal tinha um abacateiro. Altivo e portentoso, com seus galhos a crescer lateralmente, o abacateiro, apesar do apreço que eu tinha para com ele, nunca nos deu abacates.

Anos se passaram e vim parar no interior do Paraná, onde também plantamos um abacateiro há alguns anos, que desde o ano passado nos poupa de comprar abacates no supermercado. E por poupar-nos desse preço, nosso apreço por ele é imenso como seus ramos. E até maior que pelo abacateiro primordial.

O abacateiro fica ao lado do canil de nossa cadela vira-lata importada de Sertaneja. Sempre achei meio doida essa cadela, seu comportamento não é o habitual aos cães. Hoje descobri a razão de toda esse desvario: há um Aleph no abacateiro.

Para quem não sabe do que se trata o Aleph, aí embaixo menciono ele, num famoso conto de Borges. E para quem está com preguiça de procurar, coloco aqui uma breve síntese do quê, afinal, se trata esse tal de Aleph: “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos”. Ao mesmo tempo, acrescento eu.

É o mundo inteiro num pequeno ponto luminoso. E o vi hoje à noite, quando ia, rotineiramente, alimentar minha pequenina monstra doida canina. Quando me dirigia até lá, percebi um pequeno ponto luminoso, que nunca antes tinha visto. Voltei, e vi de novo. Era assombroso.

Agora entendo minha pequena cadela, que loucamente latia sempre que alguém se aproximava, como que querendo avisar "olhe ali! é o mundo em nossa frente!", e corria atrás de seu próprio rabo, provavelmente indignada que nenhum de seus donos percebia a imensidão que se encontrava no pequeno ponto luminoso escondido em meio às folhagens do abacateiro.

Estou me decidindo no momento o que faço, se começo a cobrar visitas ou se me deleito solitariamente nesse ínfimo prazer que é conhecer o mundo sem sair de casa. Ficaria certamente rico, se optasse pela primeira. Mas o ser humano é egoísta por natureza. Talvez eu decida ficar pobre e doido, rindo do infinito mundo e sua patética existência. Comendo abacates.

O abacateiro está eternamente condenado à vida. Preciso ir agora. O Aleph me espera.

Publicado em 01 de dezembro de 2007

domingo, 25 de abril de 2010

"O que a eternidade é para o tempo o Aleph é para o espaço"

Enquanto tento retomar o ritmo perdido do mestrado, começo hoje a resgatar textos do limbo do meu antigo Grogue hospedado no Tipos. Grogue este que uso de vez em quando pra treinar italiano, cujo link vocês encontram ali do lado. Do lado direito. Os critérios de escolha são estritamente subjetivos e não é possível recorrer. Se tudo der certo, nada dará errado. Eis o texto:



Com essas palavras Borges inicia o prefácio de seu melhor livro que já li, El Aleph, cujo conto homônimo já havia baixado e lido em espanhol.

Obviamente há coisas chatíssimas como um conto chamado Os Teólogos que quem não for da área não agüenta dois parágrafos sem fazer um esgar de desgosto. Li até o final por teimosia.
O que faz Borges parecer tão bom e suas histórias soarem tão verídicas (ele mesmo conta em seu prefácio a vez que um jornalista perguntou a ele se o Aleph existia realmente) é sua grande erudição e a profusão de citações, que mesmo que quiséssemos não teríamos material para pesquisa para comprovar, num país tão privado do hábito da leitura. Desta forma, ficamos sem saber se as citações são verdadeiras ou não. Algumas o são, e talvez (certamente) ele tenha usado esse artifício justamente para confundir. E consegue.

Mas o que em seus livros me chama a atenção é o fascínio pelos labirintos, pelos sonhos e pelo absurdo. São temas que invariavelmente acabo por ser atraído de alguma forma, e isso certamente reflete no que escrevo, assim como o Bukowski reflete no que bebo, e vice-versa.

Dos 17 contos que compõem o livro, pelo menos quatro, que me lembro, ou aludem a labirintos em sua trama, ou se passam dentro de labirintos. O que mais me chamou a atenção foi o conto "A Casa de Astérion", justamente porque uns dias antes estava lendo algo sobre a mitologia grega, sabe lá porque razões do acaso, e escrevi este texto no meu antigo blog.

A auto referência entre os contos do mesmo livro é também interessante. E O Aleph, na primeira vez que li, apesar da falta de treino do meu espanhol, mostrou-me uma faceta diferente dos contos absurdos e sobrenaturais. Diferentemente de H.P. Lovecraft, cujas histórias sobrenaturais sempre envolvem poderes antigos, ocultos e desconhecidos dos seres humanos, Borges, pelo menos no que li até agora, sempre conta histórias "já relatadas" por outros, repletas de citações, o que de alguma forma as torna mais verossímeis. Raramente é o narrador onipresente e onisciente nosso velho conhecido.

Como sabiamente o próprio Borges disse no chatíssimo texto Os Teólogos: "As heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a ortodoxia".

Substitua heresias por contos.

Publicado em 22 de novembro de 2007

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Apotegma

Humano é um ser que gira em torno ao próprio umbigo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Matemática e outros causos

Muito embora eu tenha trabalhado durante 5 anos num banco, nunca gostei muito de matemática. Porém confesso que a habilidade e a convivência diária com os números melhora realmente o raciocínio lógico. Isso se você não enlouquecer antes.

Dias atrás comecei a fazer as contas. Não as contas que devo pagar mensalmente, mas comecei a contar, num simples momento de ócio - coisa rara ultimamente - as cicatrizes que detenho pelo corpo, quase todas adquiridas durante a infância, e as histórias que só a elas pertencem. Muito curiosas, por sinal.

Um exemplo: creio que a primeira em ordem cronológica foi a que tenho na sobrancelha. Parte esta da anatomia humana que desde pequeno chamo de sombrancelha com M, ao contrário do que relata o meu amigo Aurélio, que prefere a primeira opção. Isso tudo por questões de preferência estilística. Ou licença poética. Escolham vocês.

Enfim, eu devia ter no máximo uns 6 anos, porque ainda ia à pré-escola. Meu pai, quando jogava na loteria, sempre me pedia pra escolher os números, e foi isso que fiz. Um jogo era sempre o meu, outro da minha irmã. Um dia, chegando em casa, meu pai disse que eu tinha acertado a quina, e tava rico. Comecei a pular de alegria. Embora pra mim rico seria provavelmente o suficiente pra comprar alguns brinquedos que eu queria e outras baboseiras pra comer. Pulei sem direção e sem prestar muita atenção no que fazia até que, em um desses saltos, pisei numa bola que estava por ali justamente para ser pisada, e bati com a testa num degrau. Só depois descobri que era uma brincadeira do meu pai. Mas querendo ou não, a quina eu acertei. A quina do degrau. Cinco pontos na sombrancelha, cujo prêmio, pra toda vida, foi uma cicatriz.

Algumas vezes abri o joelho durante a infância, mas são tantas cicatrizes uma em cima da outra que nem se percebe mais. Parece um joelho (ou dois) normais. Já na adolescência, apesar de eu sofrer gravemente com a acne e não ter dó de espremer aqueles minivulcões da minha face, por algum motivo inexplicável não fiquei marcado.

Incontáveis vezes cortei os dedos e a mão com papel, inclusive contando dinheiro no banco (quem disse que dinheiro não faz mal a ninguém?) mas creio que nenhuma dessas vezes foi suficientemente profundo pra deixar uma cicatriz. Hoje em dia, no hotel em que trabalho na Itália, não passo mais de uma semana sem cortar os dedos com o papel. Esse é um dos problemas das pessoas sistemáticas...

Mas creio que o caso mais insólito é de uma cicatriz que tenho no dedo indicador da mão. E não digo em qual das mãos a cicatriz está, porque ela passa de uma mão para a outra quando bem quer. Neste momento está na direita, mas nada posso garantir até amanhã.

Durante muito tempo, eu tive quase certeza absoluta que essa cicatriz (à época sempre no dedo da mão esquerda) tivesse ocorrido durante uma pescaria no sítio do meu falecido avô, onde sempre eu passava minhas férias escolares, às vezes sozinho, às vezes com meus primos, desbravando o mato e pescando. Numa dessas pescarias - de lambaris, óbvio, com caniço de taquara (bambu para os leitores do Paraná pra cima) - eu teria, distraidamente, deixado que o anzol se enroscasse no meu dedo e fizesse essa pequena curva perto da dobradiça do meio. Passei anos contando aos colegas dos colégios onde passei, vangloriando-me como se fosse uma cicatriz de guerra, conseguida com um anzol. Ledo engano.

Muitos anos depois, sabe lá por que desrazões da memória, me lembrei o que de fato havia acontecido. Eu e um colega de classe, como todos aqueles da nossa idade, tínhamos cada um seu canivete. E a brincadeira era aquela de, rapidamente, como uma das mãos bem aberta, fazer com que o canivete batesse entre os vãos de cada dedo, o mais rápido possível. Eu era craque nisso e então, com a mão esquerda aberta, comecei os movimentos, ritmados e lentamente aumentando de velocidade. São nessa coisas estúpidas da vida que se percebe o quanto a notoriedade faz bem ao ego. E também o quão fácil é transformar essa vanglória (já diz o próprio nome: vã glória) em arrogância, para em seguida precipitarmos no poço obscuro do ridículo. E é aí que também aprendemos, normalmente a contragosto, como se joga sujo.

Um desafeto, sabendo que eu gostava de uma guria chamada Débora (sinto cheiro do seu perfume até hoje), disse que ela estava vindo. Comecei a suar, enquanto lutava para não errar as batidas e a galera contava pra ver se eu ultrapassava o recorde vigente. Num momento de esperança, estiquei os olhos ao lado pra ver se ela estava ali, e o canivete cortou fora metade do meu dedo. Me sentia como Lula, se àquela época eu o conhecesse e soubesse que era manco dos dedos. Mas não pensei em virar presidente, nem em colar novamente o dedo, só queria que Débora não tivesse visto.

Só quando vi que ela não estava por ali foi que peguei a ponta do dedo e o forçava contra o cotoco, enquanto um outro colega enrolava tudo com um pano. Não lembro dos dias que se passaram depois, nem se fui a um hospital (creio que sim), mas talvez o trauma de tudo isso tenha me levado a acreditar, por anos, a origem errada da cicatriz.

A cirurgia, muito bem feita por sinal, me deixou com poucas marcas e a articulação do dedo indicador não sofreu limitações. A única coisa estranha é quando a cicatriz muda de uma mão à outra. Às vezes sonho com um disco voador. Curiosamente, desde então, meus polegares têm o movimento restrito.

sábado, 3 de abril de 2010

Oh, yes

existem coisas piores que
estar sozinho
mas com frequência demoramos décadas
pra percebermos isso
e com mais frequência
quando conseguimos
é tarde demais
e não tem nada pior
que
tarde demais.

Charles Bukowski , tradução minha

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Os prazeres dos danados

 Não me lembro extamente quando ouvi falar de Henry Charles Bukowski pela primeira vez, nem a primeira coisa que li dele. Com certeza foi entre 1998 e 2003, quando o dito já estava morto (isso em 1994). Tenho alguns livros seus, todos em português, todos em prosa. 

Me lembro que cheguei a criar, durante a faculdade, a década Bukowski, que se não me engano deve terminar em 2014. A data certa será relembrada no momento justo e oportuno.

Uma vez achei um livro que me chamou a atenção pela capa, e em algum poema perdido pelos blogs da vida eu o citei como uma "garrafa de Bukowski 25 anos".Trata-se de um livro bilíngue, ou seja, original em uma página, tradução na seguinte. A tradução era uma porcaria, e isso eu consegui identificar ainda àquela época, muitos anos antes de resolver fazer essa doideira que é o mestrado em tradução que to fazendo. E o título obviamente é passível de objeções. 25 melhores poemas na opinião de quem, cara-pálida?

Mas foi o primeiro contato com as poesias Bukowskianas. Que eu gostei, claro. Mesmo porque, até então, só havia lido as prosas em que ele mesmo se auto-declarava um poeta. Mas um poeta sem livros traduzidos pro português (pelo menos eu nunca tinha achado um, com exceção deste infeliz exemplar já comentado). E o que achei mais interessante em suas poesias, além da melancolia, é uma característica estritamente estética, que consiste em mudar de linha em um ponto não comum da frase, quebrando o ritmo, deixando a leitura como as vidas ali retratadas, tortas e mancas, deixando as palavras que finalizam essas mesmas frases sozinhas, como ele, o poeta misantropo.

Eis que, aqui na Itália, enquanto passeava por uma livraria virtual, achei algo que não pude resistir, e comprei. Uma seleção de poemas do grande poeta das garrafas, do turfe, das mulheres e da solidão, de 1951 a 1993. Embora não seja do Paulo Leminski, o livro é um catatau: 557 páginas contendo em torno de 270 poesias, no original em inglês, sem aquelas traduções sem-graça pra encher o saco. Duzentos e setenta poemas. Pouco, quase nada, se compararmos com as mais de mil poesias que a Wikipedia afirma que ele escreveu (não custa relembrar ao leitor desavisado que o prêmio nobel José Saramago também consulta esta grande obra virtual da sabedoria, como comprova esse post no seu blog oficial, o que sempre a nós, meros mortais, libera a consciência de eventual culpa ou preguiça).

O nome do livro do Buk, pra quem se interessar, é The pleasures of the damned, que eu traduziria em um primeiro momento como "Os prazeres dos danados", embora o damn em inglês tenha também outras acepções tenuamente diversas desta, mas enfim, discutir o título não levará a lugar nenhum, pelo menos nesse momento. 

Enfim. Charles Bukowski é aquele que, como Dalton Trevisan, Pedro Juan Gutierrez, Rubem Fonseca e outros mais nos fazem lembrar que a vida não é essa coisinha bela que muitos queriam que fosse. Que se você não ficar esperto, a vida te aniquila como eu aniquilei nesse momento um mosquito com meu dedo.

Aí embaixo, um dos poemas, traduzido por mim:



Seguros

a casa dos vizinhos me deixa
triste.
ambos marido e mulher acordam cedo e
vão ao trabalho.
chegam em casa no início da noite.
têm um pequeno menino e uma menina.
pelas 21h todas as luzes na casa
se apagam.
na manhã seguinte ambos marido e
mulher acordam cedo de novo e vão ao
trabalho.
retornam no início da noite.
pelas 21h todas as luzes se
apagam.

a casa dos vizinhos me deixa
triste.
as pessoas são boas pessoas, eu
gosto deles.

mas sinto que estão se afogando.
e não posso salvá-los.

eles sobrevivem.
eles não são
sem-teto.

mas o preço é
terrível.

às vezes durante o dia
eu olho para a casa
e a casa olha para
mim
e a casa
chora, sim, é verdade, eu
sinto isso.

a casa está triste pelas pessoas que ali
moram
e eu também
e olhamos um ao outro
e carros passam pra lá e pra cá
na rua,
barcos atravessam o porto
e as altas palmeiras cutucam
o céu
e esta noite às 21h
as luzes se apagarão,
e não somente naquela
casa
e não somente nesta
cidade.
vidas seguras se escondem,
quase
paradas,
a respiração dos
corpos e pouco
mais.