quinta-feira, 26 de maio de 2011

Considerações sobre a eternidade - o Déjà vu

Eu estava lendo um artigo sobre literatura na internet, quando tive a sensação de já ter vivido aquilo antes. Tecnicamente isto é chamado pelos dicionários e especialistas de "déjà vu". Mas não tratava-se de uma simples sensação de que o que eu vivia já teria acontecido antes. Era algo muito maior.

Pois enquanto eu lia o fatídico artigo, no mesmo momento lembrei-me de uma conversa com um amigo no dia anterior. E tive a sensação de já ter vivido aquele momento, de já ter lembrado daquela conversa antes. Contudo, parecia repetir-se também o instante da leitura no exato momento em que eu presenciava o déjà vu da conversa: o déjà vu de um déjà vu. Um paradoxo. O caos total. O apocalipse.

O déjà vu, pelo menos para mim, que convivo desde pequeno com tal fenômeno, não é somente uma sensação de repetição. Sente-se também a repetição de todo o contexto, as falas, os gestos, os sons. Tudo repete-se da mesma e exata maneira - isso partindo do pressuposto que trata-se de uma repetição. Sendo uma repetição, pode ser uma das provas da teoria do eterno retorno. O que confirma também as teorias que dizem que o destino já está escrito, o que fazemos é somente repetí-lo eternamente. Não poderíamos lutar contra ele (o destino). Ou então tudo isso tem a ver com a existência de múltiplos universos paralelos? A verdade é que o déjà vu é algo maior do que um simples mal-funcionamento ou travessura do nosso cérebro. É algo desconhecido.

Quando pequeno, comecei a perceber esses fenômenos e volta e meia, quando eu presenciava um deles, fazia caretas ou movimentos bruscos e inesperados, como que para fugir do script, o que deve ter causado estranheza a não poucas pessoas que presenciaram esta performance. Provavelmente eu pensava - obviamente de um modo inocente e, acima de tudo, inconsciente - que tudo estava já pré-determinado, e que o déjà vu era somente a confirmação das regras a serem seguidas. Regras impostas por alguém - Deus? - já escritas, prontas e que estavam sendo executadas no momento. Porém mesmo meus movimentos repentinos de nada adiantavam, pois a sensação de repetição abrangia também essas maluquices. Cresci.

Durante muito tempo esqueci-me de tal fenômeno, ou melhor, aprendi a conviver em paz com ele. Nos últimos anos, contudo, tenho entendido o déjà vu como um sinal - do quê? de quem? Deus? - e tenho me guiado pelas suas sucessivas aparições. Demorei algum tempo até aceitar isso como um sinal.

Uma vez admitida esta hipótese, veio outro problema: sinal de quê? Debatendo-me sobre questões cruciais para a humanidade como esta, acabei, por um raciocínio longo que exigiu muito dos meus já exaustos neurônios, decidindo que deveria apreendê-los como sinais do caminho a ser percorrido, das escolhas a serem feitas. Apesar de eu ter uma simpatia pela teoria do eterno retorno, admitir o déjà vu como um sinal acaba por refutar esta teoria. (Foi o que fiz, muito embora eu ainda esteja desenvolvendo a minha teoria. No futuro deverei achar um modo de integrar ambos, conciliando-os. Mas isso é um problema para o futuro). .

Mas como nem tudo são flores, os espinhos apareceram uma vez mais: este sinal - com a sorte de que seja realmente um sinal - refere-se a uma confirmação "sim, você está no caminho certo" ou uma advertência "cuidado, caminho errado, volte duas casas e tente de novo"?

Como sou otimista e gosto de simplificar as coisas, admiti que o sinal era "ok, siga em frente, você está no caminho correto". A partir daí, a cada déjà vu eu relaxava e pensava "maravilha, vamos continuar assim". E nos períodos de estiagem de déjàs vus (o Houaiss não me informou o plural de déjà vu...talvez porque ele não tivesse tantos) o terror me acometia "o que fiz de errado? onde será que eu errei?". E assim segui minha vida, até o dia de hoje, quando o destino - Deus? - resolveu pregar-me mais uma de suas peças.

Um déjà vu duplo. Como interpretar isso? Como uma negação? Como uma ênfase (é isso aí cara! acertou em cheio dessa vez hein)? Como uma histeria? Como o fim dos tempos?

Não sei. Preciso de um tempo para pensar e descansar até conseguir resolver mais este problema mundial. Mas, quando tento dormir, ouço bips dentro da minha cabeça. O silêncio da noite me abarca com a melodia de bips eletrônicos em meu cérebro. E a coceira que a cicatriz antiga me deixa, toda vez que ela muda de mão, me irrita de tal forma que já não consigo mais articular as palavras.

Eis o fim dos tempos.

sábado, 7 de maio de 2011

O gato do cão

Depois de alguns dias de frio, o dia parecia ter amanhecido mais tranquilo. O céu azul e limpo, os pássaros a cantar convidavam-me para sair de casa e acabei por aceitar o convite.

Nem o tumulto nas calçadas, o fedor e o aperto nos coletivos, os engarrafamentos nas ruas, nada, nada poderia estragar esse dia.

As moças caminhavam alegremente, com suas roupas agarradas aos corpos perfeitos, faziam caras e bocas nesta manhã azul. Tudo estava perfeito, até que o vi.

Saindo do parque, tranquilo, feliz da vida, olhei para o chão e o vi. Aquela criatura, deitada ao lado de um muro, em frente ao portão de uma casa, como um guardião. Mas não era um cachorro. 

Era um gato. Um gato preto, Um gato preto caolho, que me fitava com o olho bom e me amaldiçoava com o olho inexistente. Eu preferiria enfrentar Cérbero com suas três cabeças às portas do inferno a encarar novamente este gato maldito. 

Ao vê-lo, minha vida mudara para todo o sempre. Ao vê-lo eu sabia que estava vendo mais do que um gato. Eu via o além negro e obscuro, eu via o futuro imerso em trevas. Eu via o mal. O gato saído das profundezas. 

O gato do cão.