sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Da chuva e da morte

A chuva é sempre uma imagem poética que dá audiência. Batida e rebatida, todos a usam e sempre funciona. Assim como entes etéreos e eternos como o tempo, o vento, a vida, a morte, o nada, e etc etc e etc e talz.

Chuva é sinônimo de Joinville. Há mais de dois anos descobri esta definição que não se encontra nos melhores dicionários. A morte porém ronda. E muito embora as metáforas sejam boas e quase sempre definitivas, quando a morte deixa de sê-la (uma metáfora), torna-se um peso.

Uma das metáforas da chuva é o choro. Chover é o mundo que chora. Alguém que chove por dentro, chora, copiosamente. A união de elementos eternos, a morte e a chuva. São tristes. Literariamente eficazes. Humanamente insuportáveis. Céu e inferno, dois lados da mesma moeda.

Desde 2008, vejo a morte de perto. E a cada morte, um pouco de mim também morre. A intolerância, embora ainda de tamanhos incomensuráveis, diminui. É a vida a preparar-nos ao nosso fim. Ashes to ashes. Até lá estaremos acostumados.

Sempre relutei em admitir, mas a morte me fez escrever a coisa mais linda que realizei na minha vida, mas que se perdeu nesta labirinto chamado internet. Era um texto sobre a morte de meu avô e do nascimento de meu sobrinho, quase concomitantes. Espero um dia reencontrá-lo.

Foi triste demais escrever este texto. Lembro de ter chorado um monte após terminá-lo, e parece que a tristeza ali descrita e escancarada abarca todas as mortes posteriores que vivi. Presenciei mortes que em mim tiveram impacto semelhante a esta primeira, mas que por descaminhos incompreensíveis, não originaram nenhum texto.

A morte é uma merda. Um ser (um ser?) desprezível. Sou sempre um dos primeiros a questionar a morte, ou qualquer outra verdade eterna. Mas sem provas irrefuáveis, temos que admitir: ela existe. E fede pra caralho.

Minha esperança não é, como pensam, a imortalidade. Deixo isso para os tolos. Não penso, nem mesmo, na ubiquidade. A onisciência, para mim, é uma ostentação supérflua.

Quero somente, antes de minha morte, reecontrar o texto que escrevi. É a minha essência. Aquilo sou eu.


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Jogatina


Olhando de frente, vê-se dois prédios, um muito próximo ao outro. Vê-se que o da direita é mais antigo que o da esquerda e este, por sua vez, um pouco mais baixo que o primeiro.

A proximidade entre os dois prédios causa fenômenos no mínimo intrigantes. graças a isto, os apartamentos de baixo do prédio da direita não recebem nem um pingo de sol durante o dia (talvez algumas gotas com o sol a pino). E, por coincidência do destino ou por mera sacanagem do pedreiro, os apartamentos de ambos os prédios encaram-se frente a frente, sacada a sacada, janela a janela, na mesma altura. Se existir um voyeur entre os vizinhos, é o local indicado para bisbilhotagem anônima. A rotina escancarada elevada à última potência.

É ali onde eu, Zaratustra, habito. A minha caverna atual.

Recentemente mudou-se uma velhinha para o apartamento que fica em frente ao meu. Muito me fazem falta os antigos inquilinos, pois descobri que era dali que vinha o sinal wi-fi que eu emprestei por muitos meses. Infelizmente descobri somente quando sumiram.

Após alguns meses desocupado, mudou-se uma velha para o referido apê. Provavelmente não pode ou não gosta de pegar sol. Assiste pouca TV, e fuma bastante na sacada. Mas não vi nada disso. Quem me contou foi o voyeur do apê de cima.

Dias desses, distraído acabei por observar o apê da velhinha: ao redor de uma mesa redonda forrada com veludo verde, 4 ou 5 outras idosas, cada uma com muitas cartas em cada mão, sérias, numa jogatina ferrenha que deveria valer o ingresso para o baile da feliz idade. Não identifiquei o jogo, mas a coisa era séria, pois vi à tarde, saí de casa e voltei à noite e ainda estavam ali.

Não parece ser pôquer, ao menos não vejo fichas. Se fosse eu ia entrar na roda pra rapar a mesa das anciãs. Deve ser canastra ou pif. Sabe lá.

Seguidamente se reúnem, mas creio que ultimamente a coisa tem sido mais frequente. Anteontem ali estava, hoje também. Não me surpreenderia se estivessem há três dias seguidos ali, estáticas, uma tentando arrancar das outras a casa, o carro perdido na rodada anterior. Ou o ingresso pro camarote no baile de sexta à tarde.

Enquanto o mundo gira, a vida segue e outra rodada recomeça. O eterno retorno dos ases. Nesse momento porém uma percebeu que estou olhando... melhor disfarçar. Sob meus óculos escuros, às 23h, ninguém deve perceber que as observo.

Ela avisou as outras. Todas me encaram agora, com olhares ameaçadores. Mas velhinhas com olhares ameaçadores são sempre engraçadas, e me escapa uma risada. Agora mexem na bolsa. Devem procurar um guarda-chuva pra jogar em mim. Eu rio enquanto faço gestos imitando um jogo de cartas e abro mais uma cerveja.

Quando olho novamente, três armas na sacada apontando pra mim, a raiva pulsa em seus olhos. Meu último desejo?

Que a cerveja estivesse gelada.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A invenção da ubiquidade



Em fevereiro de 1999 tive a satisfação de poder assistir a uma semana literária ocorrida em Buenos Aires e dedicada ao centenário do nascimento do escritor argentino Jorge Luis Borges. De todos os eventos, o que mais me agradou foi a fala do parceiro e amigo de Borges, o escritor Adolfo Bioy Casares.

Durante uma de suas intervenções, em um debate sobre o livro O Aleph (que por coincidência calculada pelo próprio autor – ou por uma sutil ironia do destino – completava cinquenta anos de lançamento naquele mesmo ano), o escritor pôs-se a relatar um fato ocorrido em sua juventude na década de 30, poucos anos após ter sido apresentado a Borges . 
 
Ainda que com uma inevitável infidelidade vocabulária e linguística (graças à língua de origem, o espanhol, e aos anos que já se passaram desde então), reproduzo, na mais sincera e imparcial fidedignidade, possível o relato de Bioy Casares. Ei-lo:

“É a primeira vez que conto este episódio a alguém. Nem mesmo minha falecida esposa, Silvina, jamais soube do acontecido.

Após uma noite de divertimento entre vinhos e algumas garotas, no meio da madrugada encontramo-nos a sós em um bosque. Estávamos eu, Borges e alguns amigos jornalistas e escritores, caminhando, conversando e rindo de nossas histórias patéticas, certamente já ébrios, quando sentimos uma garoa fina e breve. Em nosso estado não nos foi possível perceber, num primeiro momento, nada de estranho ao redor.

Seguimos até sentirmos novamente a mesma garoa, vinda após o ruído de algo sendo atirado em um lago, como um peixe ou uma pedra. Apesar de estarmos longe da cidade, nas redondezas não existia curso d'água algum. Demos, por fim, de ombros e caminhamos por mais uns dez minutos, talvez, até sentirmos de novo a garoa, subitamente após o estalo d'água. Paramos, olhando-nos intrigados. Mais um estampido e eu e Borges notamos uma gota que caía e, em frente aos nossos olhos, diminuía de velocidade, retomando em seguida seu movimento elíptico para cima.

'Estou vendo coisas', pensei. Poderia ser a ressaca, o delírio. Mas não. Era a realidade. E as gotas, também reais, respingavam em nós vindas de cima, ignorando o que chamava-se até então de força gravitacional. Eu estava perplexo, assim como todos os outros colegas ali presentes, mas Borges sorria. Parecia saber do que se tratava.

Ao olharmos para cima, vimos o inacreditável: havia um lago sobre nós, de onde os peixes pulavam e, após suas aterrissagens – de ponta cabeça – as gotas saltitavam em nossas faces descrentes. Foi quando nos demos por conta: estávamos em um ponto onde podíamos interagir com inúmeros locais concomitantes, complementares, simultâneos e, ao mesmo tempo, absurdos e inverossímeis. 
 
Devo adverti-los que o absurdo e a inverossimilhança destas paisagens se resumiam no fato da impossibilidade delas coexistirem daquele modo, dentro do que conhecemos como mundo, e do que supomos seja a realidade (seguindo as 'leis' que aceitamos, durante a existência humana, como regentes do universo). Naquele exato instante, contudo, aquelas paisagens eram tão naturais e críveis como qualquer estímulo visual cotidiano.

Podiámos vê-las e tocá-las, mas não nos era possível crer em nossos sentidos. Tudo se completava e se desmentia diante de nossos olhos incrédulos. Borges conhecia aquele lugar, e ali nos trouxera, sorrateiramente. Ele sorriu, sugerindo uma condescendência amistosa e cúmplice com nossa ignorância.

Após este dia, nunca nenhum dos presentes retomou este assunto. Era como um segredo compartilhado apenas com olhares que, caso revelado, seria certamente tomado por uma alucinação coletiva. Embora repleto de testemunhas, jamais poderia ser levado a sério. Tentei algumas vezes voltar ao local, mas nunca reencontrei o caminho. Eu era apenas um jovem, nos meu vinte e poucos anos, e minha memória relembra o episódio como uma invenção fantástica, um sonho, uma paisagem surreal criada pela minha cabeça, inalcançável, ininteligível. Mas, apesar de tudo, ainda palpável.
Em 1949, uma década depois e no mesmo ano em que completou cinquenta anos de idade, Borges lançou seu famoso livro de contos O Aleph. Algumas coisas então começaram a se explicar.”

Findo o relato, os presentes estavam estupefatos. Não acreditavam no que acabavam de ouvir, mas o modo como foi contado fora tão eficiente que chegou a convencê-los do contrário.

A amizade entre os dois grandes escritores é sabida, mas a origem do Aleph continua um mistério.
No prólogo para a edição inglesa de 1970, Borges define este “objeto” assim: “o que a eternidade é para o tempo o Aleph é para o espaço”. No conto, o narrador o descreve como uma esfera de mais ou menos três centímetros. Por outro lado, a fala de Bioy Casares menciona paisagens concomitantes e, ainda por cima, palpáveis. Qual das versões torna-se mais convincente? 
 
Tomando como premissa que o local descrito exista mesmo e tenha inspirado Borges, é nítida sua intervenção literária ao transformá-lo em uma esfera: um objeto sem início e sem fim que simboliza, de modo esteticamente perfeito, assuntos caros à sua obra, como o infinito, o absurdo, o fantástico.
E Bioy Casares, teria querido brincar com o misticismo em torno do célebre conto? Nunca saberemos o que realmente se passou: se a verdade, uma invenção, uma brincadeira ou se foi apenas mais um jogo literário de dois mestres, que viam a realidade como apenas mais um dentre vários gêneros literários.

Bioy Casares relatou esta história, pela primeira e única vez, em fevereiro de 1999. Em oito de março do mesmo ano, veio a falecer. Eu, contudo, nunca estive em Buenos Aires. Mas pude presenciar seu belo discurso. Apesar do tempo que passou desde então, lembro-me como suas palavras soaram verdadeiras, e provavelmente o eram. Não me recordo, contudo, se eu estava diante de uma esfera ou de infinitas paisagens. A emoção do momento abarcou minhas lembranças. Mas posso dizer, sem a menor sombra de dúvida, que eu tinha o universo diante de mim.


(Imagem: Jacek Yerka - "Krysia's Garden")

domingo, 29 de setembro de 2013

Delírio


Eram seres
de sons estranhos
de vidas tortas
lugar algum

Parecia
mas não era um sonho
era um delírio
do cão bebum

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

The rush of the red dust - An ode to the toxic smoke

When I take off my glasses
the world seem to rest
my head
oh yeah
my heavy head
becomes lighter
and starts to fly

Long and long and long
live
life
leave
me
leaf
leaves
liver
long
live
Liv...

And I'll be there
to catch you,
baby

The world and the dust
that burns and burns and burns

The dust
must be some kind of
hidden metaphore
of an imaginary life

It flies and blows and goes
pushed by the wind
as the old singer sang once

Yeah
I must be getting old, man
Incredible and
melancholic.
Unavoidably
old.

I wish I could
- as (or with) the red
dust -
fly

I wish
I could be
that noble.

But I ain't.

High temperatures,
Farenheits,
Celsius,
Kelvins,

High temperatures,
Highs and lows,
High hopes.

But
at the very end
it
all becomes
dust.

Again.




quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Acabou a luz



Acabou a luz.

Quando a luz
acaba
o mundo parece
descansar.

Acabou a luz.

E a luz da chama
da vela
me chama.
Mas nem sempre se vê.

Acabou a luz.

E pelas janelas
vê-se o mundo apagado.
Vê-se o mundo.
Só.
Quando acaba a luz.

Acabou a luz.

E quando ela volta
a um nada me reduz.