quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O Cadáver

Dormia inerte em seu jazigo. Morto sim, mas dormia, pois vivo estava. Sentia-se solitário a despeito da companhia dos vermes. Desprezava os vermes, execrava-os. Ainda assim, eram seus únicos e grandes companheiros

O cadáver putrefato deleitava-se em seu sono. Sua pulcritude exalava odores exóticos, perfumes que atraíam borboletas mil, insetos dois mil e micróbios três mil e quinhentos. O corpo jogado perecia com o tempo. Cria na exumação eterna da alma, na mumificação das virtudes e na cremação dos pecados e arrependimentos. A violação dos túmulos dos desejos era uma heresia castigada com a morte. O cadáver tinha princípios claros seguidos à risca.

O velório do cadáver não teve defunto. Sua cova vazia permanece. A nota de falecimento no jornal, contudo, existiu, e embrulhou peixes na feira no dia seguinte. Foi também usada para forrar o chão de carros recém-lavados, para servir de base a excrementos caninos em apartamentos, para atear fogo a churrasqueiras cujos pedaços de carne salgada em cada grelha era como a carne do cadáver sendo cauterizada em fogo brando, as feridas com sal, a dor insuportável, o urro dilacerante aturdindo os vermes.

A necrópsia no cadáver não foi feita. Seus parentes não o procuram. Seus pertences a Deus pertencem. O leito de morte é exíguo. O candelabro que ilumina o sono do cadáver permanece com apenas uma vela acesa e as sombras que dali derivam dançam languidamente sobre sua cama.

D. Aristéia usa seus poderes sobrenaturais para acordar o morto. A necromancia é o pesadelo do cadáver. Por mais abjeto que seja e por mais ojeriza que tenha dessa prática, dela não foge, pois há forças maiores no mundo que sobrepõem-se às nossas vontades e a luta contrária sempre é vã. D. Aristéia chama-o, e pairando por sobre a mesa, o ódio contraindo-lhe as faces, o cadáver aparece e seu desejo mais profundo é vê-la morta no mesmo instante.

Há séculos D. Aristéia vive em uma velha casa de madeira, onde invoca os mortos para bater um papo. As únicas almas com quem conversa. Seu epílogo foi escrito em sua lápide, que encabeça mais um túmulo vazio. Os fantasmas que assomam desbotados sobre a mesa de invocação a odeiam com todas as forças sobrenaturais que existem. Os vermes a dominam. Ao contrário do cadáver, ela fede. Ao contrário do cadáver, a pulcritude nela inexiste. Ao contrário do cadáver, D. Aristéia está morta.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O Túnel


um ser roto
um serrote
vai moldando a letra
por conveniência própria

Um Túnel de Vento
no Tempo da Vida
Um Túnel de Vida
no Vento do Tempo
Um Túnel do Tempo
na Vida do Vento

E regressar ao início é nada menos que ventar uma lembrança
e vivê-la como pensamento
e cheirá-la como pudim de vento
no túnel do tempo da vida
inútil

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Sobre coelhos e cajados

Nada que suponho conhecer parece-me verdade. O diálogo:
Hot guns and cold cold night

O diálogo. Sobretudo agora, quando Débora ao longe, em minhas memórias, acenou-me sua tristeza. Débora foi a primeira pessoa a quem amei realmente. Sempre tento colocá-la em meus contos, mas nunca parece natural o suficiente o nome Débora. Talvez porque a história não esteja sendo contada de maneira natural, talvez isso. O diálogo:

“Bom dia.”

Sempre fico em dúvida de como começar um diálogo, se com aspas ou travessão. Saramago inovou, seus diálogos separam-se por vírgulas, num mesmo parágrafo:

A manhã estava clara quando Joaquim disse, Bons dias Maria, no que ela lhe respondeu, Bons dias, Manoel.

Rubem Fonseca não usa exclamação em suas frases. Nunca. Mesmo as mais desesperadas, aos berros, não possuem o alarmante “!”. Concordo com ele. Voltemos ao diálogo:

Lilith, pelos campos verdejantes, saltitava e cantarolava sua música preferida, chacoalhando a longa cabeleira negra, assoviando, agitando os braços. “Six six six, the number of the beast”. Nada mais puro que um heavy metal.

Kerouac carregava seus livros com adjetivos mil, um atrás do outro, sem muita ordem. Há uma linearidade, contudo, que prende o leitor, pois seguimos os caminhos do pensamento, sem esbarrarmos em formalidades demasiadas. Talvez uma forma de entrarmos na cabeça do autor. A pontuação formal, se considerarmos sob certo viés “conservador” - não arrumei melhor adjetivo - molda o leitor à história. Ou talvez eu esteja divagando. Engraçado eu ter falado em diálogo, muito embora, até agora, necas de pitibiribas. Minto. Olhá lá ele:

- Te conheço de algum lugar, garota.
- Não sei donde possa conhecer-me. Eu não existo.

Primeiro clichê: surpreender o leitor no início do diálogo. Logo de cara ele percebe que se passa algo unnatural, não existe. A partir daí começa a supor teorias, será um fantasma, a consciência, ou, como em Ítalo Calvino, simplesmente alguém que não existe mas, ainda assim, convive naturalmente com as outras pessoas. Cabe ao autor manter a emoção dessa novidade até o final, criando sempre, e cada vez mais, situações inusitadas. Primeiro, por si só, criará empatia com o leitor, afinal, quem não gosta de dar risadas? Segundo, situações desconexas não necessitam ter tanta semelhança com a realidade, permite mais liberdade. Mais fácil para o autor e entretém o leitor. Dois Paulos Coelhos numa cajadada só. Enfim:

- ... Eu não existo.
- Sei, conta outra.
- Assim como é difícil você acreditar, é difícil para eu provar. Não posso manifestar-me, não posso mover objetos. Sabe lá como, de alguma forma, ainda consigo manter um diálogo, mas isso, como você mesmo objetou, não é prova suficiente.

Nessa hora, Saramago interviria na narração para supor que o leitor está duvidando da veracidade da trama, procurando erros formais e lógicos, mesmo num texto ilógico, e justificando-os. Borges, ao contrário, no conto em que ele se encontra consigo mesmo, põe em dúvida a veracidade da história através do diálogo dos dois Borges de maneira tal que, no final, sabe lá como, ficamos ainda em dúvida se não haveria acontecido o tal encontro. É um tipo de descrição e de diálogo incrivelmente natural. O mesmo acontece com García Márquez, porém de uma forma mais bucólica.


Outro dia continuo essa brincadeira de análise literária.

sábado, 1 de setembro de 2007

A década Bukowski

Saúdo Charles Bukowski. Porque é a vida sem frescuras que imaginamos ter. Porque é ser seco com outros, sem se importar, como gostaríamos de fazer. Porque o desprezo exercitado continuamente nos traz um ceticismo incomparável. Porque o ceticismo é uma virtude que nos vale por toda a vida, um aprendizado contínuo da natureza humana, um perceber de detalhes indescritível.

Saúdo Bukowski. Como também o faço a John Fante, que mostra as fraquezas tragicômicas da juventude, e o ridículo nosso de cada dia é também uma aula que não se pode desperdiçar. A raiva de nosso ridículo é um motor impulsionando nossas vidas. Para mais situações ridículas, mas ainda assim um motor.

Saúdo Mr. Salinger, o recluso. Saúdo Pedro Juan, o Gutiérrez. O grotesco, o cru, o inenarrável, o deplorável: detestável e excitante, estímulo e ojeriza, tentação e nojo, paixão, ódio e desprezo. Asco.

Saúdo Rubem Fonseca, o mestre.

Saúdo enfim todos os anjos e demônios que me acompanham nessa década. Por que haverá um fim (sempre há de ter) para toda obra literária. Há data e hora, mas ainda não há local.

No dia 22 de abril de 2014 às 23h59 encerra-se a década e a ressaca contínua, e saudarei a meus mestres com muita gratidão. A partir daí, vida nova. Seja lá o que isso quer dizer.