quinta-feira, 21 de abril de 2016

COMO PERDER A SI MESMO EM 7 ATOS*


I - A Felicidade Inebriante ou A Vontade de Não-Ser

Nas horas escuras de dúvida e temor e desejo de viver
Insurge-se contra mim e me atropela
A vontade de não-ser
Das profundezas mais sombrias e execradas do meu pensamento surge ela,
fingindo não-ser para ficar
Forçando-me contra meu abismo e sucumbindo-me às suas vontades
A vontade de não-ser toma conta de mim e me governa
Abusa do meu corpo e do meu cérebro obtém o que quer e quando quer
Os fins justificam seus meios sem meio-termo,
nem devaneios e sem ao menos ligar para as conseqüências
O ápice da vontade de não-ser inebria de uma forma o meu ser que,
por estar vivo no outro dia posso considerar-me um vitorioso
Triste, porém, é saber por vozes do além o que a vontade de não-ser provocou em mais alguém



II - Um Sentido Escondido

Assim como sucumbo à vontade de não-ser sucumbo também à dúvida que me dilacera atrás de respostas e de defesas para meu corpo a memória castigada em sua via-crúcis semanal é pouco mais que nada: é uma pegada na lama enquanto chove é uma gota de água na imensidão do mar as escoriações, os odores, as sujeiras e as dores são parcos indícios de coisa alguma as falas confusas, flashes de cenas que bem poderiam ser de um filme, ou de um sonho, mais me atormentam que me acalmam e a angústia de não ser ninguém me abraça e me acolhe com seu calor, seu aconchego e suas canções de ninar

III - Um Motivo Qualquer

Tudo começa na hora do sonho que me excita pensamentos e imagens
Pessoas e lugares desfilam em meu córtex e,
violento e semi-adormecido, aceito dos delírios as provocações sem pestanejar
Ou então não é num sonho, é num convite, numa pergunta e perdido e sem opção me atiro de cabeça na ignomínia desenfreada e sem volta sem pensar
Ou então é só, enquanto eu, pusilânime, me deleito na minha necessidade e no meu vício de solidão que me impelem a ser quem não sou sem questionar
Pode ser um sonho acordado enquanto olho o horizonte fundo,
do outro lado e aceito distanciar-me de mim sem piscar
Ou são apenas desculpas para eu não precisar admitir minha covardia perante a vida.

IV - Um Estímulo Podre e Desleal

Uma vez fora de mim qualquer bobagem torna-se grandiosa e qualquer olhar transfigura-se em amor qualquer mulher em amante qualquer sussurro, um convite
E quanto mais me suicido, mais me maldigo por dentro e, concomitantemente, mais ódio e raiva transbordam de mim e me estimulam a mudar-me, ainda mais, a personalidade
No final todos são procazes (inclusive o mais santo) e todos suscetíveis a opróbrios tão voláteis quanto meu humor e tão vazios quanto eu

V - O Desespero Pós-Felicidade

O ato de acordar talvez seja o mais amargo e acre depois da felicidade inócua
Perdido e sem ação, lamento e retorço as memórias e o corpo numa vã tentativa de retroagir e, sem sucesso, resigno-me e sofro, enfim, o castigo que mereço
Meus fantasmas, sarcásticos, não perdoam nem mesmo meu estado de inação e fraqueza
Meus fantasmas e minhas sombras me subjugam e me desequilibram impiedosos
Meu ódio é inversamente proporcional ao meu conhecimento e às minhas conclusões
Mesmo nosso julgamento das coisas não tem valor quando não se tem noção do que se perde e do que se é

VI - A Angústia Premeditada

Na montanha e na caverna de meu desespero os corvos,
os abutres e os urubus devoram a carne pútrida da minha felicidade
Morreu em êxtase: ébria e dormitante
Morreu desgostosa: só e iludida
Morreu.
Em seu lugar nasceu uma angústia melancólica e sufocante cujo sabor eu já sentira outrora
Senti-me repetindo uma mesma vida
Revivendo meu início, rebobinando e reiniciando a mesma fita
Senti-me pedante como todas as redundâncias
Senti-me enjoado como todas as repetições
Senti-me tonto como tudo o que gira e não consegue parar
E preso à essa angústia renasci igual e tão fútil quanto antes
Todas as vidas que vivi e que vivo têm o mesmo gosto insosso e a mesma cor amarelada
Todos os dias em que me vejo no espelho enxergo uma caveira que acena e ri-se de mim
Corro para longe e, à medida que me afasto,
aproximo-me mais do que tanto fujo e do que tanto temo: A minha verdade
O único modo de não encontrá-la é esconder-me e, abraçado à angústia, fingir não ser para ficar Viver outras vidas, mas ficar.

VII - O Fim do Ser Enquanto Dono de Si Mesmo

O que hei de chamar minha vida?
Eu?
O que vivo?
Minhas lembranças?
O que penso?
O que hei de chamar minha vida?
E o que hei de chamar eu mesmo?
Quem há de saber minha verdade, a não ser a própria verdade?
Estou desenganado.
Já desisti de ser eu mesmo.
Não me reconheço em meus atos nem em minhas palavras.
Muito menos no espelho
O espelho da caveira claudicante deve representar os meus não-seres,
os meus refúgios da verdade, mas não pode representar a mim!
Nego-me a aceitá-la como meu reflexo, ainda que verdadeiro!
Antes renegar o verdadeiro eu e tornar-me outro,
ou sublimar-me no ar, a aceitar minha decadência e viver sem vida
como um inseto ou poeira e perecer destruído mas com o orgulho de ser eu mesmo!
Antes não ter de aceitar minha alma - ou o que dela resta - de volta,
e perder meu espírito,
e sentir-me nu por dentro,
a regozijar-me por morrer em pedaços mas com a alma intacta!
Antes uma não-vida em um não-lugar a uma vida que não se percebe,
num lugar que não se sente!
Agora que a vontade de não-ser se apodera dos meus últimos pensamentos
deveras aproveitáveis e das minhas últimas verdades e suspiros,
digo adeus à vida e a Deus.
Agora não sou mais eu,
nem o intermédio: sou o outro.
Um outro que não sabe quem é,
nem porque é.
Mas vive.
Desalentado e indiferente a tudo,
mas vive.

* Texto escrito por mim mesmo, no já distante 22/01/2003, com 21 anos: estudante, desempregado e sem perspectivas num breve futuro. Mal sabia eu o que aconteceria em poucos meses... É interessante ver como eu pensava àquela época. Minha evolução (ou involução, dependendo do ponto de vista). Fica o registro da péssima escrita do início do século, que deu origem à péssima escrita atual.