sábado, 12 de novembro de 2011

A vertigem



Ray Charles canta uns blues antigos no meu herdado Polyvox, tão velho quanto eu. "Very special people", diz ele. Grande Ray. Figuraça.

Ray Charles canta enquanto eu tomo uma cervejinha e penso em seres mitólogicos, como um centauro, um pégasus, uma esfinge. Penso nesses seres e na sua inquietude sobre a própria condição como uma metáfora. Uma metáfora metalinguístisca metastática. Algo do gênero. Roba da matto, diria o falecido Berlusconi.

Berlusconi está para sair do poder na Itália. É estranho acompanhar as notícias de lá estando longe. Berlusconi esteve à frente do país por quase vinte anos. Uma geração inteira nasceu, cresceu e tornou-se adulta tendo o mesmo lunático como chefe. E, o pior, de forma democrática. A piada interna italiana do momento é a esquerda se perguntando: então ele caiu...agora o que fazemos? Alguém aí sabe governar?

A esquerda  italiana esteve 20 anos como oposição. Os políticos que hoje tem 40, 50 anos eram recém-formados quando Berlusconi chegou ao poder. Berlusconi é imortal, todos sabem. Hoje tem quase 80 anos. Embora tenha a mesma cara repleta de cirurgias igual a quando assumiu o poder.

Berlusconi chegou ao poder graças ao sucesso empresarial, principalmente em 3 campos: a mídia (jornais de grande circulação, grandes editoras e, das 6 maiores emissoras de TV, é dono de 3. As outras 3 são públicas); o sistema financeiro (possui sei lá quantos bancos e seguradoras e afins) e o futebol (dono do Milan). E a gente acha o Sílvio Santos grande coisa. O banquinho que ele tinha, faliu.

E Sílvio (o Berlusconi, não o Santos) chegou ao poder e, além de controlar as 3 grandes emissoras privadas, passou a controlar indiretamente as 3 tvs públicas. Um dos times mais vitoriosos nos últimos anos no mundo, o Milan, influenciava os novos torcedores. E assim viveu a Itália durante quase 20 anos. Democraticamente.

Não vou nem mencionar os inúmeros escândalos sexuais com menores, ministras modelos e vexames diplomáticos internacionais, como quando chamou o recém eleito Obama de "bronzeado" e pregava peças na alemã Angela Merkel nos encontros de chefes europeus. Sem contar as amizades suspeitas, como o Kadafi.

Mas caiu. É bonito ver alguém cair, desse modo. Porque por mais que o cara tenha sobrevivido por tantos anos, sempre conseguia a maioria absoluta no parlamento, o que prolongava o mandato. Mas, a partir do momento em que perdeu a maioria, caiu. Ao contrário do Brasil onde, se um presidente perde a maioria, digamos, no primeiro mês de mandato, fica ali 4 anos isolado sem fazer nada, porque nada será aprovado. Mas fica, intocado e ninguém diz nada. Quando na minha opinião seria caso de impeachment.

Foi bonito ver o Berlusconi cair. Eu queria estar lá agora, apesar do frio. Queria ver os toscanos, os mais centro-sinistra da Itália, soltando rojões, os estudantes malucos da Universidade de Pisa tocando suas músicas doidas na Piazza dei Cavalieri para comemorar, ironicamente, a queda do Il Cavaliere. Os malucos enchendo a cara na Piazza Garibaldi. Gritando Silvio, vaffanculo, testa di cazzo! E sempre teria alguém pra gritar, no meio de tudo, Livorno merda! Seria legal ver essas cenas. Ou revê-las. No frio e na chuva pisana. Ray Charles me deixa nostálgico.

Ray Charles me deixa nostálgico como estava Guedali, o centauro no livro O centauro no jardim, do falecido imortal (por demais irônico tudo isso) Moacyr Scliar. Guedali nasceu centauro, meio-homem, meio-cavalo. Viveu escondido por anos. Encontrou uma centaura. Fizeram uma cirurgia que os deixaram normais. Casaram-se. Separaram-se. Já homem, quis voltar a ser centauro, apaixonou-se por uma esfinge: busto de mulher e corpo de leoa. Copularam. Mas sobreviveu e delira nostalgicamente de quando galopava pelos pampas tocando violino. Enquanto centauro, quis ser homem. Quando homem, quis retornar a centauro. A metáfora, sobre a condição humana: sabe-se lá o quê. Mas é mais ou menos por aí, já diria Zé Oreia.

Esfinge gatinha. Melhor, gatona
Dizem que é o melhor livro do Scliar. Não li muitos dele, mas creio que A mulher que escreveu a Bíblia deve rivalizar, se não tomar o posto do centauro. São, contudo, livros extraordinários.

Barão Vermelho acabou de tomar o lugar do Ray Charles. Da mesma forma, passo do Scliar para Jean Echenoz. A minha cerveja aquiesce.

Jean Echenoz é um escritor francês maluco, contemporâneo. Se não morreu, ainda está vivo. Apesar de meu mestrado ter sido sobre a literatura de língua inglesa, foi um autor que conheci justamente ali, porque o tradutor da obra do Echenoz pro italiano era meu professor. E achei muito boa a ironia, a combinação de situações absurdas, o ritmo da narrativa. Foi, sem dúvida, uma descoberta fenomenal esse tal de Echenoz. E pelo que procurei na internet, ainda não foi traduzido para o português. Se eu pudesse, traduziria a versão italiana, mas tradução de tradução vira uma confusão, já disse o sábio Zaratustra.

Durante a feira do livro de Pisa, na qual trabalhei no estande da Editora onde eu estagiava (ou terá sido na feira do livro de Torino? minha memória falha) encontrei outro livro do Echenoz, intitulado em italiano Correre (Correr). Neste caso foi uma biografia romanceada do corredor e fenômeno tcheco Emil Zatopek, que assombrou o mundo na metade do século XX com seu estilo nada elegante mas eficaz de correr. Eu, que já tenho uma grande simpatia pela antiga Tchecoslováquia e pelas atuais República Tcheca e República Eslovaca, curti muito o livro, embora não imaginasse que fosse falar desses países quando o comprei. Não por acaso, na mesma feira (Pisa, Torino?) comprei mais dois livros: Un uomo al castello (Um homem no castello) escrito pelo ex-presidente da República Tcheca Václav Havel, que antes de ser presidente era já escritor e dramaturgo, que conta sua passagem pelo poder com muito de bastidores e dúvidas cruéis de um escritor-presidente. O outro livro, lembro-me muito bem até hoje, perguntei à bela moça qual o escritor tcheco mais reconhecido atualmente, e ela me indicou Jan Weiss, com um estilo surreal, disse. O sorriso dela ao dizer surreale me convenceu.  Il palazzo a mille piani (O prédio de mil andares). Já gostei do nome. Pensei comigo, se for como Kafka (autor de A metamorfose) e Milan Kundera (A insustentável leveza do ser), os únicos tchecos que eu conhecia, deve ser bom. Lê-lo-ei, um dia.

Gregor Samsa, alter-ego de Kafka
Praga, a capital da República Tcheca, é uma cidade surreal (gosto da surrealidade do mundo). É considerada uma das mais bonitas de toda Europa. Ali nasceu e viveu Kafka, um judeu burocrata que enloqueceu no trabalho e adoeceu. Morreu cedo e virou barata. Ali Einstein ensinou, durante alguns anos, na Universidade de Praga. Frequentou os mesmo círculos de Kafka, participava dos saraus literários e das discussões locais. À época parte do Império Austro-Húngaro, em Praga falava-se, predominantemente alemão. Kafka escreveu em alemão, embora também soubesse o tcheco. A única palavra que sei em tcheco é pivo. E siginifica cerveja. Ela sorri. A skol.

Einstein
 Ray Charles voltou, agora canta Georgia on my mind, em que ele fala do estado da Georgia, embora eu tenha quase certeza que ele conheceu uma moça chamada Georgia e dedicou-lhe a canção. (Só agora lembrei que tenho em algum lugar desse caos a que chamo de casa um dvd do dueto Ray Charles e Willie Nelson. Preciso escrever qualquer dia ouvindo e bebendo uísque).


Mas sinto que tudo talvez tenha um sentido escondido em algum lugar, seja nas patas e nas vísceras de um centauro, nos seios da bela esfinge, no sexo selvagem entre um homem-cavalo e uma mulher-leoa, na corrida desenfrada de um louco, em prédios surreais, circundado por baratas de Kafka, a vertigem, a vertigem. A sugar-me como um ralo. O cheiro do ralo.

Entretanto: Há guamole em pé dradura. Como já disse Millôr Fernandes, o guru do Méier. Mas a verdade é outra, e diversa.

sábado, 15 de outubro de 2011

Eins, zwei, polizei


Depois de, em 2009, ter ido à Oktoberfest em Munique, eis que chega a vez de conhecer a 2a. maior festa de alemao do mundo.

Em 3h estarei em Blumenau. Ein prosit!

sábado, 8 de outubro de 2011

Mochilão na Europa PARTE IX - Berlim



Eis-me aqui novamente, cada vez mais escrevendo menos. Mas isso faz parte da vida, essa coisa da qual todos fazemos parte, mas cada um tem a sua. Falando brevemente da minha, estou eternamente  em adaptação, mas quase chegando àquilo que é tido pelo senso comum de uma vida normal. Pelo menos é no que creio, neste instante.

Graças à minha relapsia, já se passaram 7 meses da última publicação do meu relato e mais de um ano da minha viagem. Como anunciei neste post, a viagem fez aniversário. Muitas lembranças se perderam no caminho, da mesma maneira que a minha câmera fotográfica. Eu até teria como reconstituir as datas exatas em que estive em Berlim, mas obstáculos me impedem de fazê-lo no momento. Como a preguiça. Tenho a leve impressão que era um fim de semana. Vamos todos acreditar nisso mesmo, e tocar o relato pra frente, pois o mesmo deve ser finalizado antes de seu aniversário de dois anos. E agora tenho uma motivação a mais, visto que encontrei a coleção de mapas das cidades visitadas, os únicos resquícios verdadeiros dessa viagem que a mim já  parece um sonho, ou um delírio, inacontecido. 

Mas, como eu ia dizendo no  último post:

Cheguei em Berlim perdido, mas me achei. A minha anfitriã, a jornalista alemoa, morava com uma francesa que não estava em casa no referido fim de semana. A casa não era uma casa, era um apartamento razoavelmente velho, bagunçado e cheio de moscas. O bairro de Neukölln é repleto de imigrantes das mais variadas nacionalidades, e é frequentado também por artistas alternativos, intelectuais ou pseudo tais entre outros malucos. Fazia parte da Berlim Ocidental, na época da Guerra Fria.

Aliás, a Guerra Fria representada pela divisão da cidade em duas, ainda pode ser muito bem observada tanto na arquitetura como na mentalidade do povo alemão. A parte soviética construía edifícios feios, grandes. Totalmente diferente da parte americana. E até hoje têm-se um preconceito. Foi o que percebi conversando com algumas pessoas, numa festa de aniversário em que entrei de penetra. Mas talvez eu tenha tido esta impressão porque falei somente com pessoas que vivem no lado americano.

Festa estranha com gente esquisita. Eu na verdade queria ir a um outro lugar qualquer, ver movimento, pessoas etc. Mas como hóspede, não tive muita escolha. Como a jornalista alemã era misantropa, fomos ao aniversário de uma moça razoavelmente antipática. Ambas haviam dividido uma casa um tempo atrás e, mesmo uma não indo muito com a cara da outra, a jornalista preferiu estar ali presente a ir pra uma verdadeira balada. Ach, diese Deutsch...

Mas conversando e tomando um mé - cacildis! - acabou que um casal puxou conversa. Ele um maluco professor universitário de não me lembro o quê. Ela, professora de crianças, se não me engano - e tenho grandes chances de me enganar. Nesta conversa foi que percebi o preconceito alemão em relação à parte soviética da cidade.

Contudo, ali mesmo na parte soviética,vê-se também a imponência e a grandiloquência do regime socialista russo. Em um dos passeios que fiz com minha anfitriã (com a bicicleta da companheira de casa pega escondida), fomos ao Treptower Park, um imenso local verde, memorial da II Guerra que homenageia 5 mil soldados russos mortos na batalha de Berlim em 1945. As estátuas ali presentes, umas com mais de 10m de altura se não me engano, impressionam a qualquer um. Eis algumas fotos (da internet, óbvio, visto a morte prematura da minha máquina fotográfica, que um dia será também homenageada com uma estátua de 10m de altura):


Até os dias de hoje, o lado soviético ainda é economicamente menos desenvolvido que o lado americano, apesar da queda do muro ter acontecido há 20 anos. É interessante também o famoso Checkpoint Charlie, um posto militar controlado pelos EUA que permitia a passagem de estrangeiros e autoridades do lado oriental para o ocidental e vice-versa. Hoje uma réplica foi reconstruída para satisfazer os turistas loucos por fotos. No romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos do grande Rubem Fonseca, o protagonista, metido em inúmeras intrigas, atravessa para o lado oriental como turista para contrabandear um suposto antigo manuscrito do escritor russo Isaac Bábel. Um bom livro, diga-se de passagem. Mas voltemos ao relato.

Esse contraste em Berlim acho que foi o que mais me impressionou, e foi então que decidi pesquisar algo sobre a história alemã, e descobri simplesmente que...ela não existe! O território que hoje é chamado de Alemanha já passou por várias, inúmeras mãos no passar dos séculos, e pode ser considerada Alemanha somente a partir de 1990, com a unificação da Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental em República Federal da Alemanha (Bundesrepublik Deutschland). O caos. Mas isso, aprendi, aconteceu com quase toda a Europa.

Chegando em Berlim, a primeira coisa que fiz foi descobrir um ponto de informações turísticas e pegar um mapinha, que normalmente é de graça. Mas ali não era, somente os folders de propaganda eram gratuitos. Porém vi um mapinha pequeno e, pensando que pelo tamanho fosse grátis, peguei-o e fui embora. Ao abrir, vi que tinha um preço bem na capa do mapinha, mas já era tarde demais. Dei o calote na alemoada.

Berlim é uma cidade gigantesca. Durante esta viagem meu joelho ainda estava em bom funcionamento e em todas as cidades eu fazia tudo a pé, para conhecer mesmo os lugares, me enturmar com a populaça e desbravar o desconhecido. Até tentei fazer o mesmo em Berlim, mas depois de caminhar por horas e continuar na mesma avenida, sem alcançar os lugares que eu queria e - o pior - sem nenhum ônibus passando por perto, tive que chegar à conclusão de que era uma cidade grande mesmo, muito embora coubesse dentro do meu mapa roubado, que cabia no meu bolso.

Berlim é, além de gigantesca, moderna. Diferentemente do resto da Europa que conserva construções medievais de séculos anteriores ao nosso, Berlim (e as grandes cidades da Alemanha) foram praticamente destruídas por completo na segunda guerra. Pela mesma razão, senti-me talvez pela primeira vez em um local vivo, parte de uma história recente que vivenciei, mesmo criança, pela televisão: a divisão da Alemanha em duas.

Apesar de ter ido a locais mais "famosos" como Roma e Barcelona, na Alemanha foi que me dei conta de que o mundo existe mesmo, e não é apenas uma ficção de um escritor louco, tendo nós como personagens. Ou talvez seja. Mas ali em Berlim eu percebi que, mesmo que eu seja um personagem de um escritor louco, pelo menos sou um personagem com a consciência de sê-lo em um local que, fictício ou não, fez parte da história recente do mundo, seja este mundo real ou irreal ou surreal ou abn amro real.

Creio, porém, ter-me alongado muito nessas digressões inúteis e deixado pouco tempo ao relato da viagem propriamente dita. Mas tudo bem, agora estou de volta, novamente com meus mapas e, no próximo relato, tentarei detalhar as possibilidades e impossibilidades berlinenses nestas linhas tortas, relatando minha ida ao Schloss Charlottenburg, Tiergarten, Brandenburger Tor, Friedrichstrasse, Alexanderplatz, o Muro de Berlim e mais outros locais tipicamente alemães. Nos vemos lá.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Regina


O desaparecimento de Regina foi um baque para todos nós. Nos reuníamos quase toda semana, cinco a sete pessoas, para bebermos e comemorarmos nossa amizade. Regina sempre fora a mais reservada do grupo, só se soltava depois de beber algumas doses, mas era divertidíssima. De poucas e certeiras palavras, era impossível não se impressionar com a acuidade de sua inteligência. Vez ou outra, devido a alguns remédios que alegava tomar para combater dores insuportáveis na coluna, Regina ia a nossos encontros e não bebia. Já nos acostumáramos a isso depois de anos. A última vez que a vimos ela não bebeu.

Foi um mês sem sua presença e começamos a nos preocupar. Karla era a única da turma que sabia onde Regina morava e propôs que fôssemos visitá-la no fim de semana seguinte. Todos aceitamos e brindamos a ela.

No sábado pela manhã fomos a seu prédio. Não havia porteiro e ninguém respondia ao interfone. Por sorte um morador saiu instantes depois e conseguimos entrar. Encontramos a porta entreaberta e, após tocarmos a campainha, entramos. A sala estava vazia, sem mobília, sem nada. A poeira que se acumulava no assoalho era espessa e parecia de meses. Não havia pegadas ou rastro de móveis arrastados. Simplesmente abandonado. Senti um frio na espinha e todos pressentimos que algo estranho estava para ocorrer.

Queríamos apenas ir embora. Contudo estávamos imóveis. Era certo que não havia mais ninguém além de nós, mas tive a intolerável certeza de que Regina ali estava. Era possível sentir uma presença etérea, difusa, como se preenchesse a sala inteiramente e se unisse ao ar de alguma forma, tornando-o espesso. Nossos movimentos cada vez mais lentos e desesperados pareciam presos, de tal forma que nos sentíamos em câmera lenta, tentando fugir de algo invisível contudo aterrorizante, como nas vãs tentativas de fugas em meus piores pesadelos. E como esse desespero não fosse suficiente para deixar-nos inertes, Regina materializou-se subitamente e o ar voltou ao seu estado físico natural. No entanto o terror que nos acometeu impôs-se sobre nossa vontade, que ordenava a fuga, e somente pudemos sentir o alívio de não estarmos mais presos ao ar espesso e pegajoso. Não havia como reagir, o medo em situações subitamente desconhecidas é como um paralisante. Mesmo o mais forte e emocionalmente controlado dos seres humanos, diante do oculto e do imprevisível, sente-se acuado, perde o controle de seus atos e pensamentos.

Regina parecia querer vingar-se de nós por algum motivo, mesmo sendo todos seus amigos e incapazes de fazer algo que pusesse em perigo a vida de qualquer um de nós, inclusive a dela. Sua face deformada transbordava ódio. Embora fosse possível ter certeza de sua identidade, ela parecia não reconhecer-nos. Pairando a meio metro do chão, assemelhava-se a um animal prestes a destroçar sua presa. Havia Regina e seu corpo, mas não havia alma, nem discernimento entre bem e mal.

Subitamente, como um tigre, Regina investe em nossa direção. A certeza da morte vem como o sopro de uma ventania, acompanhada de um terror lívido que nos obriga a comprimir com força nossos olhos, rezando ardentemente para que possamos acordar de mais este pesadelo.

Regina dissipa-se. Silêncio.
_______________________________
Texto meu, de 2004 ou 2005, inscrito inutilmente em vários concursos

sábado, 24 de setembro de 2011

Um Poema de Amor

todas as mulheres
todos seus beijos os
diferentes modos de amar e
falar e precisar.

suas orelhas todas elas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

na maioria das vezes
as mulheres são
cálidas elas me lembram
de torradas com a manteiga
derretida
nelas.

mas têm um modo de
olhar: elas foram
usadas elas foram
enganadas. fico sem saber o que fazer
por
elas.

sou
um bom cozinheiro um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar – eu estava ocupado
com coisas mais importantes.

mas gostei de suas diversas
camas
fumando cigarros
contemplando os
tetos. nunca fui nocivo ou
injusto. só
um estudante.

sei que todas têm esses
pés e descalças cruzam o piso enquanto
eu assisto suas nádegas dengosas no
escuro. sei que elas gostam de mim, algumas até
me amam
mas eu amo muito
poucas.

algumas me dão laranjas ou suplementos vitamínicos;
outras falam silenciosamente da
infância e dos pais e
de paisagens; algumas são quase
loucas mas todas têm um
significado; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre são as
melhores em outras
coisas; cada uma tem limites como eu tenho
limites e entendemos
um ao outro
bem rápido.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos
os tapetes as
fotos as
cortinas, é
algo como uma igreja só
às vezes tem
risadas.

essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos

me vendo, a ternura e
a vontade me possuíram me
possuíram.

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Charles Bukowski, A Love Poem, do livro 'The pleasures of the damned', tradução minha.

domingo, 18 de setembro de 2011

Fundo do baú

The stairs seem to have
no end
& I seem to
have gone insane.

(23-12-1999)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

pensamentos em um banco de pedra em Venice


me sento neste banco e vejo
o mar e os estranhos e os
amantes.

preciso de novos olhos uma nova boca novos
travesseiros, uma nova mulher.

todos os velhos garanhões com meio
olho na cabeça adoram seduzir e montar
uma nova e jovem potranca.

quando penso em homens sem mulheres cortando
a grama nos sábados e jogando futebol,
baseball, basquetebol com seus filhos
sinto vontade de vomitar no distante
horizonte.

a família fede a Cristo
e ao mercado de ações americano.
a família fede a segurança e
torpor e perus de ação de graças.
a família fede a carros sufocantes
empacotados passeando por
florestas de sequoia.

preciso de novos olhos uma nova mulher novos
tornozelos uma nova voz novas traições.

não quero uma longa procissão
funeral quando eu morrer.
quero continuar sem nenhum peso
ou obrigação.

quero somente a escuridão taciturna quero
uma tumba como esta noite agora:
eu aqui não diluído –
sólido, enfermo, imaculado.
seguro-me firmemente em mim. isso é tudo que
existe.
 ____________________________________________
Charles Bukowski, tradução minha

domingo, 11 de setembro de 2011

A vida embaçada

Muitos anos atrás eu li alguma coisa a respeito de teorias literárias e métodos narrativos, não me lembro onde nem o autor. Mas era um livro (ou um artigo ou um site na internet) que listava os métodos conhecidos de narrativa e dava exemplos de livros e autores famosos que o utilizaram. Um desses livros era "Se um viajante numa noite de inverno" do Italo Calvino e me chamou muito a atenção por ser um dos livros que usam a narração na segunda pessoa. À época eu não consegui sequer imaginar como poderia ser feita uma narrativa desta forma, e fiquei com aquela pulga atrás da orelha.

E a pulga, durante todos esses anos, coçou muito. Volta e meia eu tinha que me lembrar de ler tal livro. Eis que, após minha  mudança para a cidade mais líquida do Brasil, descobri aqui perto da minha casa várias coisas, como supermercado, fruteira, ponto de ônibus, estádios, padarias, bares, universidades, cursos e, também, a biblioteca municipal. Lá fomos nós, eu e a pulga, conhecer o local.

Fiquei impressionado com o tamanho do local: minúsculo. Pouquíssimos livros, o que demonstra que ninguém mais se interessa por essas coisas antiquadas cheia de letras. Nem eu, que confesso diminuí muito a quantidade de leituras. Mas graças à pulga, lembrei-me na hora do livro e o peguei.

Após quase 2 meses, a pulga merece vários aplausos e agradecimentos. Ela, envaidecida e tímida, aceita. Calvino é um dos grandes escritores italianos do século XX e um dos mais criativos do mundo. A pulga, com curiosidade, leu muito mais rápido o livro, e me incentivava a terminá-lo. No final consegui, mas não me animei a escrever nada, então a pulga fez uma pequena resenha, que eu iria reproduzir aqui, mas com a chuva torrencial dos últimos dias a umidade relativa do ar ultrapassou os 100%, molhando o manuscrito do inseto.

Nesses dias de chuvas intensas qualquer movimento que eu fizesse tinha a resistência similar à da água. Eu me sentia em uma piscina 24h por dia, as pessoas estavam esverdeadas, como que nascendo musgos e líquens em suas peles. Me senti um dos Buendía na Macondo de García Márquez, durante a chuva que durou mais de 4 anos.

(A pulga me pede nesse momento pra recomendar o livro do Calvino. Tudo bem, eu recomendo.)

Nadando pelas lojas centrais da cidade-água, descobri um sebo onde encontrei um dos outros grandes escritores que gosto pacas, o Fonseca, Rubem. Além de ser um dos fodões da literatura brasileira é um grande criador de títulos. "Vastas emoções e sentimentos imperfeitos" é o nome do romance que, como tudo que vem de Fonseca, é cru, sem meias-palavras, sem pedir licença. Acontece e pá pum. Fonseca não justifica nada, seus personagens não justificam nada e tudo flui como água para a imensidão do mar.

Outro livro do Fonseca cujo título é bom, porém ainda não lido pela minha pessoa, nem pela pulga, é "E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto". Tenho aqui em minha estante uma coletânea de contos e o romance "Diário de um fescenino", mas já li vários outros e como o Calvino, a pulga também recomenda.

Após ter saciado a vontade da pulga em recomendar livros e autores, coisa que eu acho meio chato, me ne vado, que hoje tenho que pegar um pouco de sol, coisa rara aqui, na cidade molhada.