Ray Charles canta uns blues antigos no meu herdado Polyvox, tão velho quanto eu. "Very special people", diz ele. Grande Ray. Figuraça.
Ray Charles canta enquanto eu tomo uma cervejinha e penso em seres mitólogicos, como um centauro, um pégasus, uma esfinge. Penso nesses seres e na sua inquietude sobre a própria condição como uma metáfora. Uma metáfora metalinguístisca metastática. Algo do gênero. Roba da matto, diria o falecido Berlusconi.
Berlusconi está para sair do poder na Itália. É estranho acompanhar as notícias de lá estando longe. Berlusconi esteve à frente do país por quase vinte anos. Uma geração inteira nasceu, cresceu e tornou-se adulta tendo o mesmo lunático como chefe. E, o pior, de forma democrática. A piada interna italiana do momento é a esquerda se perguntando: então ele caiu...agora o que fazemos? Alguém aí sabe governar?
A esquerda italiana esteve 20 anos como oposição. Os políticos que hoje tem 40, 50 anos eram recém-formados quando Berlusconi chegou ao poder. Berlusconi é imortal, todos sabem. Hoje tem quase 80 anos. Embora tenha a mesma cara repleta de cirurgias igual a quando assumiu o poder.
Berlusconi chegou ao poder graças ao sucesso empresarial, principalmente em 3 campos: a mídia (jornais de grande circulação, grandes editoras e, das 6 maiores emissoras de TV, é dono de 3. As outras 3 são públicas); o sistema financeiro (possui sei lá quantos bancos e seguradoras e afins) e o futebol (dono do Milan). E a gente acha o Sílvio Santos grande coisa. O banquinho que ele tinha, faliu.
E Sílvio (o Berlusconi, não o Santos) chegou ao poder e, além de controlar as 3 grandes emissoras privadas, passou a controlar indiretamente as 3 tvs públicas. Um dos times mais vitoriosos nos últimos anos no mundo, o Milan, influenciava os novos torcedores. E assim viveu a Itália durante quase 20 anos. Democraticamente.
Não vou nem mencionar os inúmeros escândalos sexuais com menores, ministras modelos e vexames diplomáticos internacionais, como quando chamou o recém eleito Obama de "bronzeado" e pregava peças na alemã Angela Merkel nos encontros de chefes europeus. Sem contar as amizades suspeitas, como o Kadafi.
Mas caiu. É bonito ver alguém cair, desse modo. Porque por mais que o cara tenha sobrevivido por tantos anos, sempre conseguia a maioria absoluta no parlamento, o que prolongava o mandato. Mas, a partir do momento em que perdeu a maioria, caiu. Ao contrário do Brasil onde, se um presidente perde a maioria, digamos, no primeiro mês de mandato, fica ali 4 anos isolado sem fazer nada, porque nada será aprovado. Mas fica, intocado e ninguém diz nada. Quando na minha opinião seria caso de impeachment.
Foi bonito ver o Berlusconi cair. Eu queria estar lá agora, apesar do frio. Queria ver os toscanos, os mais centro-sinistra da Itália, soltando rojões, os estudantes malucos da Universidade de Pisa tocando suas músicas doidas na Piazza dei Cavalieri para comemorar, ironicamente, a queda do Il Cavaliere. Os malucos enchendo a cara na Piazza Garibaldi. Gritando Silvio, vaffanculo, testa di cazzo! E sempre teria alguém pra gritar, no meio de tudo, Livorno merda! Seria legal ver essas cenas. Ou revê-las. No frio e na chuva pisana. Ray Charles me deixa nostálgico.
Ray Charles me deixa nostálgico como estava Guedali, o centauro no livro O centauro no jardim, do falecido imortal (por demais irônico tudo isso) Moacyr Scliar. Guedali nasceu centauro, meio-homem, meio-cavalo. Viveu escondido por anos. Encontrou uma centaura. Fizeram uma cirurgia que os deixaram normais. Casaram-se. Separaram-se. Já homem, quis voltar a ser centauro, apaixonou-se por uma esfinge: busto de mulher e corpo de leoa. Copularam. Mas sobreviveu e delira nostalgicamente de quando galopava pelos pampas tocando violino. Enquanto centauro, quis ser homem. Quando homem, quis retornar a centauro. A metáfora, sobre a condição humana: sabe-se lá o quê. Mas é mais ou menos por aí, já diria Zé Oreia.
Esfinge gatinha. Melhor, gatona |
Barão Vermelho acabou de tomar o lugar do Ray Charles. Da mesma forma, passo do Scliar para Jean Echenoz. A minha cerveja aquiesce.
Jean Echenoz é um escritor francês maluco, contemporâneo. Se não morreu, ainda está vivo. Apesar de meu mestrado ter sido sobre a literatura de língua inglesa, foi um autor que conheci justamente ali, porque o tradutor da obra do Echenoz pro italiano era meu professor. E achei muito boa a ironia, a combinação de situações absurdas, o ritmo da narrativa. Foi, sem dúvida, uma descoberta fenomenal esse tal de Echenoz. E pelo que procurei na internet, ainda não foi traduzido para o português. Se eu pudesse, traduziria a versão italiana, mas tradução de tradução vira uma confusão, já disse o sábio Zaratustra.
Durante a feira do livro de Pisa, na qual trabalhei no estande da Editora onde eu estagiava (ou terá sido na feira do livro de Torino? minha memória falha) encontrei outro livro do Echenoz, intitulado em italiano Correre (Correr). Neste caso foi uma biografia romanceada do corredor e fenômeno tcheco Emil Zatopek, que assombrou o mundo na metade do século XX com seu estilo nada elegante mas eficaz de correr. Eu, que já tenho uma grande simpatia pela antiga Tchecoslováquia e pelas atuais República Tcheca e República Eslovaca, curti muito o livro, embora não imaginasse que fosse falar desses países quando o comprei. Não por acaso, na mesma feira (Pisa, Torino?) comprei mais dois livros: Un uomo al castello (Um homem no castello) escrito pelo ex-presidente da República Tcheca Václav Havel, que antes de ser presidente era já escritor e dramaturgo, que conta sua passagem pelo poder com muito de bastidores e dúvidas cruéis de um escritor-presidente. O outro livro, lembro-me muito bem até hoje, perguntei à bela moça qual o escritor tcheco mais reconhecido atualmente, e ela me indicou Jan Weiss, com um estilo surreal, disse. O sorriso dela ao dizer surreale me convenceu. Il palazzo a mille piani (O prédio de mil andares). Já gostei do nome. Pensei comigo, se for como Kafka (autor de A metamorfose) e Milan Kundera (A insustentável leveza do ser), os únicos tchecos que eu conhecia, deve ser bom. Lê-lo-ei, um dia.
Gregor Samsa, alter-ego de Kafka |
Einstein |
Mas sinto que tudo talvez tenha um sentido escondido em algum lugar, seja nas patas e nas vísceras de um centauro, nos seios da bela esfinge, no sexo selvagem entre um homem-cavalo e uma mulher-leoa, na corrida desenfrada de um louco, em prédios surreais, circundado por baratas de Kafka, a vertigem, a vertigem. A sugar-me como um ralo. O cheiro do ralo.
Entretanto: Há guamole em pé dradura. Como já disse Millôr Fernandes, o guru do Méier. Mas a verdade é outra, e diversa.