segunda-feira, 29 de março de 2010

Do trato com a vida

Uno a embarcação
ao porto
e canto a convulsão
de um ser extinto.

Amo o sangue
que me crucia e doma,
com seu ferro.

Não espero
dos deuses,
pois engendro
o deus que me transfere
a solidão de ser
meu próprio invento.

Sou poeta,
formo o ciclo do tempo,
onde me enterro.

II

E vós quem sois? Vós que mostrais o orgulho
de monarcas sentados em seu trono e a ambição
de um jorro que se extingue. Quem sois?

Nada transpõe vossa usura,
nada transpõe a vaidade
das gazelas, com rosto de cavalo.

Vós que desprezais
do canto, a mina;
do tear da vida, a linha,
quem sois?

III

Se mostrardes
a erosão do dia
nas carroças,
concordarei com o sangue.

Se mostrardes
o término do jugo e sua máquina,
calada e represada,
concordarei com o sangue.

Não.
Não pactuo.
Não pactuo com o numerário das serpentes,
tentando violar a talha da nascente.

Não pactuo
com as garras
e o estômago encurvado
deste animal em desuso.

Não pactuo
com a turbulência fátua
da morte e o senhorio
que nos arrasta.

Entre areias sepultas,
estreitado na erva,
odiai-me fundamente.
Não pactuo.

Brotando das idades,
arbusto,
levedado no mundo,
odiai-me.

Sou vosso vômito profundo.

(Carlos Nejar)

sábado, 27 de março de 2010

Lost in translation

Uma das dificuldades maiores de alguém que muda de país, que deixa deveras frustrado qualquer ser humano nessa situação são as piadas, os trocadilhos e as tiradas.

Digo isso porque várias vezes tentei traduzir sem sucesso pro italiano as piadas recorrentes que faço em português. Algumas poucas vezes até é compreensível em italiano a minha tradução, mas daí esbarro sem dúvida em outra barreira: a do senso de humor.

Uma piada não entendida, ou até mesmo explicada, é broxante. Dá uma sensação de impotência diante do mundo, algo terrível. Hoje me deparei duas vezes em uma bifurcação dessas: fazer o não fazer a piada.
Estávamos em uma aula do mestrado. Estamos estudando poesias de um cara chamado Derek Walcott, já vencedor do prêmio Nobel, nascido em algum país caribenho. A discorrer sobre o assunto, o tradutor italiano desse mesmo poeta.

Enfim, em uma passagem o cara escreveu a palavra "moonlit" que significa iluminado pela lua. O problema é que traduzir uma palavra por três é realmente impossível. Estávamos então todos quebrando a cabeça, se em vez disso, cortar a lua e deixar só iluminado, ou então "sotto la luna" (sob a lua) que pelo menos fica menor. Foi aí então que me veio a idéia de criar um neologismo e dizer ilunaminato, que juntaria "luna" e "illuminato" em uma mesma palavra. Óbvio que seria uma tirada feita pra suscitar risos, descontrair a aula e ganhar alguns olhares de admiração das colegas. Até porque, apesar de substituir bem e dar o mesmo sentido do original, se o autor não usou um neologismo, quem sou eu, mero tradutor, a ter o direito de fazê-lo?

Mas como já vivi outras situações parecidas, em que minha tiradas geniais foram relegadas à escuridão do fosso das piadas ignoradas, calei-me. Embora ainda ache que seja genial.

Mais adiante, no mesmo trecho o autor fala de "dusk", cuja tradução pro italiano seria "crepuscolo", "tramonto", o nosso tão conhecido entardecer ou pôr-do-sol. De novo palavras gigantescas pra traduzir uma de quatro letras, o que quebra qualquer ritmo porventura existente. E daí começaram as piadas que eles mesmo faziam, tipo traduzir como antes da janta, essas coisas, e eu estava quase pra soltar uma, mas parei com ela na garganta.

Nunca calar foi um ato de tamanha sabedoria. Sairia dali tachado de louco se houvesse aberto a boca. Porque no Brasil, um país em que as pessoas fazem seu horário de acordo com a programação da Globo, dizer "depois da novela" todo mundo entende, e cai na risada. Mas aqui...aqui até passa novela brasileira, de tarde se nao me engano, aqui os programas até têm seus horários fixos e se repetem todo o dia, mas não se ouve falar "ah depois do jornal, depois da novel, depois do jogo". Aqui ainda não estão subjugados pela autoridade televisiva (embora estejam por Berlusconi, mas isso é assunto pra outro dia). Aqui cada um faz seu tempo.

Talvez por causa da violência no Brasil, ficamos mais tempo em casa e, por conseguinte, mais TV na cabeça. Aqui as pessoas caminham sem olhar pra trás pra ver se tem alguém seguindo. No Brasil a vioência nos faz ver novelas. E por culpa disso, perdi minha piada, uma vez mais...

Preciso de uma psicóloga, pra ver se recupero meu senso de humor. Sem meus trocadilhos, não sou mais o mesmo.

segunda-feira, 22 de março de 2010

A arte de ler

Eu tava aqui, perdido entre as fotocópias do mestrado, as minhas traduções e a bagunça metódica do meu quarto quando percebi que tenho uma quantidade gigantesca de livros aqui que comecei a ler e parei na metade, não por falta de interesse, mas simplesmente por que paro de ler por uma razão mais ou menos razoável - como dormir ou trabalhar - e quando posso retornar à leitura, me esqueço dela e começo outra.

Resolvi então listar, por pura falta do que fazer, ou melhor, por falta de tempo pra escrever algo melhor, resolvi elencar os tais livros aqui embaixo, com alguns comentários a respeito, isso se eu já tiver formado uma opinião a respeito:

L'italiano - lezioni semiserie (O italiano - aulas semi-sérias) de Beppe Severgnini: o autor é um famoso jornalista italiano e o livro é um manual bem-humorado de como escrever bem a língua de Dante. Pra quem estudou jornalismo, lembra muito um manual de estilo, com os erros mais comuns que a italianada comete na fala e na escrita. E percebe-se que cada exemplo que ele dá você ouve muitas vezes ao dia. Mas como diz o título, as lições são meio sérias. Pelo menos se aprende rindo.

Romanzi e Racconti (Romances e contos) de Italo Calvino: Obra completa de um dos maiores escritores italianos do século passado. São três tijolões que quero terminar de ler ainda esse ano. Calvino é um mestre dos contos e um dos autores preferidos de Zaratustra. Esse maluco eu já conhecia ainda no Brasil, com os livros O Cavaleiro inexistente e O castelo dos destinos cruzados (o último deu origem a uma música dos Engenheiros do Hawaii, o que provavelmente vai distanciar os leitores, ao invés de aproximá-los).

La luna e i falò (A lua e as fogueiras) de Cesare Pavese: O autor é outro grande escritor do séc. XX. É o primeiro livro que leio dele e realmente interessante. Conta a história de um italiano que fez fortuna nos EUA, retorna à sua cidade natal e reflete sobre as mudanças das pessoas, da vida e etc. O livro foi o último publicado antes do suicídio do autor e o personagem principal é sem dúvida seu alter ego. Recomendo.

La grande sera (A grande noite) de Giuseppe Pontiggia: Este livro até já comentei outro dia, escolhi ao acaso, sem conhecer nem autor nem obra, e acertei na mosca. O escritor é um grande experimentador da linguagem e como diz na contracapa, o livro é uma pintura impiedosa da Itália dos anos 80, uma sátira lúcida e amarga de uma sociedade feita de ilusões cheias e vazios reais. Estou ainda no início do livro, mas to gostando davvero.

Carta aos loucos de Carlos Nejar: Esse é brasileiro. Achei uns tempos atrás numa loja virtual, comprei e quando vim do Brasil trouxe comigo. Nejar é um poeta e, como sempre digo, um dos poucos que merecem o posto que ocupa na ABL. Esse livro no entanto é um quase romance. Quase porque, mesmo tentando escrever em prosa, o cara não consegue, o que se torna aquilo que chamam de prosa poética, uma coisa de louco mesmo, como já nos adverte o título. O conteúdo é denso e difícil de ler. Mas é bom, embora eu ainda prefira a coletânea de poemas que achei num sebo em Londrina, "De Sélesis a Danações". A única coisa que estraga é o prefácio do Paulo Coelho. Mas como já disse algum sábio, é bom que existam coisas ruins no mundo. Só assim podemos comparar com as boas e, desta forma, teremos certeza que as boas são boas mesmo.

Um excerto: "O verossímil é uma inverossimilhança que bateu com a nuca nalguma lâmpada. A nuca ficou acesa e a lâmpada se apagou".

Nuova grammatica italiana: Essa não preciso explicar porque parei no meio. Teoria é chato pra baralho.

Teoria e storia della traduzione: idem.

Crie planilhas inteligentes com o Excel 2003: Esse eu tava lendo quando não fazia nada além de coçar o saco e esperar a minha cidadania. Um dia, quem sabe, eu termino de ler. Quem sabe...

A arte de escrever de Arthur Schopenhauer: O cara é um dos mais importantes filósofos alemães. Este livro traz textos selecionados em que o autor fala sobre o próprio ofício e tece comentários desta coisa legal pacas que é escrever. Comecei a ler ainda no Brasil e parei na página 52. Mas como não me lembro de nada, provavelmente terei de recomeçar do zero.

Aprendendo a viver de Clarice Lispector: Esse não terminei de ler simplesmente porque se digere em doses homeopáticas. São microtextos e apotegmas da grande escritora brasileira, que se fosse viva e da minha idade, eu casaria sem dúvida. Indispensável.

A Bíblia do caos de Millôr Fernandes: Como o livro da Lispector, são aforismas e se consome tudo lentamente, mas com o estilo sarcástico e inigualável do autor. Recomendo.

Agora me desculpem mas devo voltar ao caos da minha lunática rotina, meus textos, minhas traduções, meus etcéteras inseparáveis.

E depois tem a cerveja, é claro, pois hoje é meu dia de folga.

domingo, 21 de março de 2010

Do tempo

O tempo
passa
Time creeps
El tiempo pasa
y no vuelve jamás

Crescemos, envelhecemos,
vivemos,
e o tempo está sempre ali,
passando,
e nos vendo ficar.

O tempo, cruel,
corre.


Mas meu relógio
parou.

terça-feira, 16 de março de 2010

Minha aversão ao cinema no país das magavilhas

Já escrevi muitas vezes aqui sobre livros, literatura em geral, do que gosto e não gosto. Principalmente o que escrevo. Já escrevi - nem tanto assim - também sobre música. Mas creio que nunca me posicionei a respeito do cinema.

Ah, o cinema! Também conhecido como sétima arte - por algum motivo que a Wikipedia explicará a vocês - o cinema (neste âmbito, para mim, compreende filmes em geral, não apenas aqueles das telonas) me acompanhou durante toda a infância com a Sessão da tarde. Naquela época, como hoje, não tìnhamos video-cassete. Hoje, ao contrário daquela época, existe o DVD. Enfim...

Lembro de filmes que me marcaram, como Goonies, Curtindo a vida adoidado e Conta comigo. Já na adolescência, devidamente equipado com o famigerado vídeo-cassete, aluguei algumas vezes filmes na locadora. Mas aos poucos fui diminuindo o ritmo até o desapego total, sem nenhuma explicação lógica aparente.

Em Londrina devo ter ido no máximo umas 10 vezes ao cinema nos 13 anos em que ali morei. Mas sinceramente, são poucos os filmes que lembro com detalhes. Um deles é Seven, um dos raros bons que vi na sala fechada e escura.

Poucos dias atrás, depois de quase dois anos na Itália, resolvi encarar o cinema aqui. Psicologicamente eu já estava preparado pro maior choque, sabia que nos cinemas europeus em geral os filmes são dublados. A obra: Alice no país das maravilhas. Não é exatamente o que eu chamaria de uma história atrativa, até porque todo mundo sabe como começa e termina, mas com Tim Burton dirigindo, vabbe', ci provo. Imaginei que pelo menos alguma coisa interessante aquele doidao faria com o enredo, como já o fez com o primeiro Batman e também com aquele que não lembro o nome, cujo personagem é o Beetle Juice - ridiculamente traduzido em português como besouro suco, quando o correto seria Suco de besouro -, personagem muito bem encarnado pelo segundo melhor ator do mundo, Jack Nicholson (o primeiro é Bill Murray)[Correção: o ator era Michael Keaton, como a Wikipedia e a nobre leitora Karen me mostraram, mas ele, no fundo no fundo, imitava o Jack Nicholson].

Além disso, dentre as histórias ditas infantis, essa é a mais interessante, na minha molesta opinião. Um gato que vira fumaça, um chapeleiro maluco, fora as doideiras durante o conto, cresce Alice, diminui Alice, o coelho atrasado, a Rainha de Copas e seu exército de cartas. Literalmente, é do baralho!

Mas a grande novidade mesmo é que foi o primeiro filme em 3D da minha história nesse planeta.

E isso é doido. Desviei umas 3 ou 4 vezes a cabeça de algum estilhaço virtual durante o filme. Mas é aquela coisa: se o que chama a atençao é o visual, certamente faltará algo de interessante em algum outro lugar.

Resumindo: fraco, muito fraco. Diálogos bestas. Clichês. Enredo pífio. O cenário é legal e o 3D combinou bem. Mas o final me dá asco. E não sei se pagar quase o dobro de um filme normal só pra ver em 3D vale a pena. Provavelmente não.

Esclarecendo, não é que me orgulho dessa minha incultura cinematográfica. Sei que existem filme ótimos e que deveria vê-los com mais frequência (até hoje as pessoas ficam estarrecidas porque eu nunca vi nem Laranja mecânica nem Pulp fiction, entre outros clássicos), mas toda vez que me aventuro em um cinema, acabo por me decepcionar no final.

Protelo, desta forma, meu vício cinéfilo em estado embrionário. Um dia ele se desenvolverá. Se não for abortado antes.

E foi assim que, uma vez mais, o cinema me decepcionou, o que me deixará provavelmente alguns meses (anos, décadas?) longe da telona, baixando filmes que porventura me chamem a atenção de graça na internet, ou simplesmente vendo pela TV. Aqui na Itália pelo menos não faz tanta diferença. Dublado por dublado, prefiro dublado de graça.

domingo, 7 de março de 2010

Abobrinha

Sinto um vazio por dentro
é a fome.
Como.

Mas continua o vazio
é a sede.
Bebo.

E ainda assim
o vazio permanece.
Padeço

Sinto um perfume

e da memória ressurgem
pedaços.

Vários pedaços.

E tudo
é um perfume.

but what's a perfume?