Todos sabemos que Caim matou Abel. Até quem nunca leu a Bíblia o sabe. Até ateus, como o recém-falecido José Saramago o sabiam. Tanto ele sabia que escreveu um livro justamente chamado Caim. Terminei de ler este livro hoje, que peguei emprestado do meu camarada Guilherme.
É um livro divertido e inteligente, como são os livros saramaguianos (ainda não sei se já criaram o adjetivo derivado do prêmio nobel português, creio que sim, senão faço eu agora). A linguagem é irônica e mordaz. Mas alguma coisa ali não me convenceu. Obviamente, sabendo que Saramago era ateu convicto, as trocas de acusações entre Caim e Deus parecem cair no vazio. Um tipo de proselitismo religioso ao contrário. Saramago usou o livro como propaganda ateísta, um modo de convencer os indecisos de que a religião "não faish o mnor sentido", como já diria o capitão bacalhau.
Apesar do prêmio nobel usar toda sua astúcia, construindo como sempre uma história admirável do ponto de vista estilístico - no que se refere a diálogos, enredos, reviravoltas -, o idealismo do autor está escancarado, e a essência do texto, a crítica à religião, acaba sendo infantil se analisada à distância. Infantil porque julgar a religião por meio das histórias repletas de metáforas e sentidos figurados do velho testamento, e condenar essa religião a partir disto, é muito superficial, chega a ser indigno à estatura literária do Zé.
Não que eu esteja também defendendo a religião, longe disso. Apesar de não ser ateu, não creio em religiões (existe um nome pra isso?), mas as respeito. Criticar uma religião, seja ela qual for, é uma coisa muito complexa. Ainda mais se pensarmos que nascemos já inseridos em uma cultura cristã, e não sabemos nem nunca saberemos o que é viver fora disso, por mais que estudemos outras culturas. É como a língua-materna de uma pessoa. Mesmo se eu fosse PHD em, digamos Javanês, e falasse, escrevesse e pensasse perfeitamente nesta língua, a minha língua-materna é o português, e tudo que analiso linguisticamente é, foi ou será comparado com a minha língua, pois é o meu padrão, pois a minha língua sou eu. Da mesma forma, a minha religião-materna ou cultura-materna - chamá-la-ei assim - é o cristianismo, pois nasci e cresci inserido nesse contexto. E mesmo se eu for convertido ao xintoísmo japonês, tudo o que eu aprender será, mesmo que inconscientemente, um eterno confronto (não no sentido de luta, mas de comparação) entre a nova religião e a antiga.
É possível que eu venha a morder a língua, uma vez que outra obra sua com temas religiosos - O evangelho segundo Jesus Cristo, de 1991 - eu ainda não li. Saltando a ordem cronólogica, vim parar em Caim, de 2009. Talvez uma sirva para entender a outra. Mas, isoladamente, é esta a minha impressão.
Em tempo: Saramago é um dos meus escritores favoritos. Gostei muito dos romances O homem duplicado, Ensaio sobre a cegueira, As intermitências da morte, A jangada de pedra, entre outros, e achei extraordinário o livro de contos Objecto Quase. O primeiro livro marrom meno do Zézinho que li foi Ensaio sobre a lucidez, que me pareceu um pouco óbvio e sem aquele ritmo frenético característico. Mas Caim não é mal escrito, longe disso (aliás, as cenas iniciais de Adão e Eva no paraíso são hilárias, e o Deus contraditório de Saramago é um cômico nato), e o recomendo como uma bela leitura de entretenimento e reflexão. Só o contexto por detrás da bagaça que me incomodou um pouco.
Talvez eu esteja ficando velho. E chato.
Bora pro carnaval!
sexta-feira, 4 de março de 2011
Caim
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Saramago era ateu convicto mas em uma entrevista vi que sua mãe era muito católica. Então a troca de acusações deve ter lá seu fundo. E sobre o cara de bigode no video do Samba do Avião: É o Danilo Caymmi :-)
ResponderExcluirbom domingo de carnaval
porra alemão! eu to em débito com o tio zé. só comecei a ler um ilvro dele até hoje, e não fui até fim. inclusive, nem lembro qual era... mas vai lendo ai e contando que aí não preciso ler..auhauhau. porra alemao!
ResponderExcluirparece gente grande escrevendo primoso!!! muy bien nunca tinha te lido...e tb não li saramago ainda...mas ei de ler...e quero a cerveja depois!
ResponderExcluirJá li alguns do Zé, esse não, e sempre tem algum caroço por debaixo do angu saramaguiano.
ResponderExcluirCaptaste bem, o alemão!
Enchi o saco de carnaval! Meu negócio foi comer churrasco e tomar cerveja em casa!
Eu li esse livro e é realmente inteligente. Vale a pena entrar no rimto do texto do Saramago e saborear cada provocação.
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