Tiergarten |
Meus fantasmas já não são mais meus: assombrarão outras pessoas agora. Desistir é uma fraqueza, característica comumente inexistente nos fantasmas, mas a espera angustiante e indefinida da continuação deste maluco e despedaçado relato transforma até a mais feroz das assombrações em pusilânime vítima do tédio. E o tédio, até os Deuses o sabem, é cruel e não perdoa.
Deixando, contudo, os Deuses de lado, que já se ocupam bastante de outros assuntos verdadeiramente importantes, voltemos ao relato, inacabado (como se uma novidade fosse), cujo último capítulo, publicado em outubro do ano passado, ninguém mais lembra. Da minha viagem, minha memória, que era de vidro, se quebrou. Só sei os lugares que visitei em Berlim porque relatei-os no último post. Mas talvez mesmo naquele texto eu os tenha inventado, portanto o que se lerá a seguir trata-se somente, e nada mais, que ficção.
A ordem dos dias e dos acontecimentos não refletem a realidade. Passou-se mais de um ano e espero terminar em breve este relato maldito, pois minha consciência pesa a cada vez que tento lembrar-me do que, na memória, já não encontro mais. Por isso crio tudo, com os mapas em minha frente, a única coisa palpável desta viagem que a Gulliver causa invejas.
Mas, como eu ia dizendo no último post:
Schloss Charlottenburg, Tiergarten, Brandenburger Tor, Friedrichstrasse, Alexanderplatz, o Muro de Berlim. Todos esses lugares existem, eu sei. O meu mapa diz isso. E, como eu mesmo afirmei que os visitei no último post, se eu não acreditar em mim mesmo, em quem poderia?
Sei que fui em todos, mas não me lembro a ordem. Finjamos, então, que eu tenha ido nesta ordem mesmo. Vejamos: enquanto minha anfitriã ia ao seu trabalho, peguei o metrô e dirigi-me ao metrô, peguei a linha U2 que leva até ao Schloss Charlottenburg. Burro fui, porque se seguisse mais um pouco na mesma linha, desceria no grande Olympia Stadion, o famosíssimo Estádio Olímpico de Berlim, onde poderia ter tirado belas e inúmeras fotos, que de nada adiantariam graças à prematura morte de minha máquina fotográfica antes do fim da viagem.
Desci na estação Richard Wagner Platz, se não me engano (a partir de agora abster-me-ei de usar o termo "se não me engano", visto a grande possibilidade de enganar-me. Pressupõe-se, doravante, que estou sempre enganado). Dali, caminhei alguns metros pela Otto-Suhr Allee, admirando a arquitetura alemoa e as alemãs arquitetônicas, até chegar na Spandauer Damm, que me levou diretamente ao Schloss (Castelo) Charlottenburg.
Schloss Charlottenburg |
Dei uma volta ao redor, mas decidi não entrar. De qualquer forma, era um belo castelo, embora eu tenha visitado alguns mais bonitos em Viena, em uma viagem de 4 dias que fiz para visitar Bratislava, a capital da Eslováquia, e Viena, capoluogo da Áustria (viagem esta que talvez, um dia, eu conte. Por sorte, tenho fotos, que servem de muletas à minha memória).
Decidi então, por um golpe de azar, ir até a estação do metrô Zoologischer Garten e ir a pé até a famosa Brandenburger Tor, passando pelo meio do Tiergarten, um gigantesco parque no coração de uma das maiores cidades europeias. Posso ter perdido minha máquina e minha memória, mas minhas pernas dóem ao lembrar desta decisão. Custou-me, certamente, alguns músculos de meu joelho. Fui-me, porém, inconsciente dos perigos que me esperavam pelo caminho. Primeiramente, até chegar à Strasse des 17 Juni, a avenida que corta o Tiergarten de leste a oeste, devo ter demorado quase meia hora. Em seguida, até atingir o Siegessaeule Victory Column, mais meia hora. Ali comecei a ver onde tinha me metido. Muito embora em meu mapa tudo coubesse em dois dedos, vi que a fatiga seria enorme. A Victory Column ficava, em meu mapa, a um terço do caminho até o Brandenburger Tor. E, se até ali eu levara uma hora quase, imagine até o final. Decidi, pois, pegar o primeiro ônibus que passasse. Caminhei com calma, olhando volta e meia para trás, esperando o momento de acenar ao motorista para parar. Porém, para tristeza minha, nenhum ônibus passava.
No desespero que a sobrevivência impõe aos desvalidos, aceitei mentalmente até mesmo a hipótese de pegar um táxi, alternativa extremamente cara e fora do planejado nesta viagem, mas que meu corpo exigia, visto o desgaste não programado e, considerando ainda, que eu estava pouco além da metade de minha viagem e energias eram necessárias para chegar ao final e poder relatar tudo, como ora estou relatando aos fantasmas de meus fantasmas. Entretanto, táxis eram como discos voadores, existiam somente na minha imaginação. Em todo este tempo, não passou nenhum em um ponto turístico dos mais visitados na Alemanha. (Em minha próxima vida vou ter um táxi nesta avenida. Ficarei rico com os turistas desavisados que por ali passarem).
Pequeno trecho da Strasse des 17 Juni por mim percorrido a pé. (Beeem) ao fundo, Brandenburger Tor. |
Mas, como diria o grande e já falecido José Saramago, o que não tem remédio, remediado está. Fui-me a pé até o dito Brandenburger Tor. Ali sim, em meio a uma multidão de turistas malditos, fatigado, com as pernas doloridas, avistei ônibus para turistas, aqueles clássicos de dois andares, e com ele visitei os pontos famosos de Berlim, dentre eles, todos aqueles listados no início deste relato.
Já no início da viagem, por uma das ruas que cortavam o fatídico Tiergarten, o guia turístico relatava, tranquilamente os pontos turísticos pelos quais passávamos, citando nomes, história e etc desses locais, até que disse, como se estivesse lendo um texto, em um tom tranquilo, não olhem para a esquerda. Obviamente, todos os turistas olharam, e viram um bando de alemão pelado. Tratava-se de um setor do parque para os praticantes de nudismo, no centro da cidade. Os americanos ali no busão presentes sussurravam "oh my god!", os eventuais sul-americanos riam, e os europeus nem bola. Os japoneses tiravam fotos, obviamente.
Alemoada pelada, nem aí pra paçoca |
A alemoada gosta de ficar pelada. Vi isso também em Colônia, quando andei num teleférico que, coincidência ou não, passava por cima dum parque de nudismo. Aliás, quem gosta de cerveja e de ficar pelado tem que ir pra Alemanha. Mein gott!
Sinceramente, não lembro muito mais além disso de Berlim. Fui no Muro, ou nos restos dele chamado de East Side Gallery, e não passa de partes que permanecem em pé, devidamente pintados e grafitados por artistas de todas as partes do mundo. Fui ao checkpoint-charlie, fui à Alexanderplatz, mas não lembro de nada. Recordo-me, porém, que em meu último dia na Alemanha minha anfitriã roubou a bike da sua colega de casa e fizemos um tour pela cidade, coisa que relatei no post anterior, o que demonstra a falta de lógica e de ordenação dos acontecimentos. Saindo de sua casa ainda vaguei por algumas horas em Berlim, decidindo se ficava um dia a mais na cidade para curtir uma verdadeira balada ou se me mandava pra Praga, capital da República Tcheca. A chuva interminável que desabou sobre a capital teutônica decidiu por mim. Seis (ou foram quatro?) horas depois, chegava eu em Praga: depois de passar pela Bélgica, a terra das loiras (as melhores e mais variadas), pela Suécia, a terra das loiras (as mais encorpadas), pela Dinamarca, a terra das loiras (as mais simpáticas), pela Alemanha, a terra das loiras (as tradicionais), acabara de chegar na República Tcheca, a terra das loiras (as mais bonitas e mais baratas, não necessariamente nesta ordem). Mas tudo isto será devidamente explicado nos próximos relatos, da mais bela cidade europeia que visitei, a mais surpreendente, a mais exuberante e, por incrível que pareça, a mais barata também, onde pude saborear quitutes nunca antes vistos, adentrar castelos gigantescos, embebedar-me em bares subterrâneos, provar cervejas mais baratas que água e ainda assim saborosas e, acima de tudo, conhecer a cidade onde Kafka nasceu e viveu e onde Einstein, na mesma época, lecionava e frequentava os mesmo saraus literários do escritor tcheco, nos longínquos primórdios do século XX.
Praga |
Continua no próximo post.