Em
fevereiro de 1999 tive a satisfação de poder assistir a uma semana
literária ocorrida em Buenos Aires e dedicada ao centenário do
nascimento do escritor argentino Jorge Luis Borges. De todos os
eventos, o que mais me agradou foi a fala do parceiro e amigo de
Borges, o escritor Adolfo Bioy Casares.
Durante
uma de suas intervenções, em um debate sobre o livro O Aleph
(que por coincidência calculada pelo próprio autor – ou por
uma sutil ironia do destino – completava cinquenta anos de
lançamento naquele mesmo ano), o escritor pôs-se a relatar um fato
ocorrido em sua juventude na década de 30, poucos anos após ter
sido apresentado a Borges .
Ainda
que com uma inevitável infidelidade vocabulária e linguística
(graças à língua de origem, o espanhol, e aos anos que já se
passaram desde então), reproduzo, na mais sincera e imparcial
fidedignidade, possível o relato de Bioy Casares. Ei-lo:
“É
a primeira vez que conto este episódio a alguém. Nem mesmo minha
falecida esposa, Silvina, jamais soube do acontecido.
Após
uma noite de divertimento entre vinhos e algumas garotas, no meio da
madrugada encontramo-nos a sós em um bosque. Estávamos eu, Borges e
alguns amigos jornalistas e escritores, caminhando, conversando e
rindo de nossas histórias patéticas, certamente já ébrios, quando
sentimos uma garoa fina e breve. Em nosso estado não nos foi
possível perceber, num primeiro momento, nada de estranho ao redor.
Seguimos
até sentirmos novamente a mesma garoa, vinda após o ruído de algo
sendo atirado em um lago, como um peixe ou uma pedra. Apesar de
estarmos longe da cidade, nas redondezas não existia curso d'água
algum. Demos, por fim, de ombros e caminhamos por mais uns dez
minutos, talvez, até sentirmos de novo a garoa, subitamente após o
estalo d'água. Paramos, olhando-nos intrigados. Mais um estampido e
eu e Borges notamos uma gota que caía e, em frente aos nossos olhos,
diminuía de velocidade, retomando em seguida seu movimento elíptico
para cima.
'Estou
vendo coisas', pensei. Poderia ser a ressaca, o delírio. Mas não.
Era a realidade. E as gotas, também reais, respingavam em nós
vindas de cima, ignorando o que chamava-se até então de força
gravitacional. Eu estava perplexo, assim como todos os outros colegas
ali presentes, mas Borges sorria. Parecia saber do que se tratava.
Ao
olharmos para cima, vimos o inacreditável: havia um lago sobre nós,
de onde os peixes pulavam e, após suas aterrissagens – de ponta
cabeça – as gotas saltitavam em nossas faces descrentes. Foi
quando nos demos por conta: estávamos em um ponto onde podíamos
interagir com inúmeros locais concomitantes, complementares,
simultâneos e, ao mesmo tempo, absurdos e inverossímeis.
Devo
adverti-los que o absurdo e a inverossimilhança destas paisagens se
resumiam no fato da impossibilidade delas coexistirem daquele modo,
dentro do que conhecemos como mundo, e do que supomos seja a
realidade (seguindo as 'leis' que aceitamos, durante a existência
humana, como regentes do universo). Naquele exato instante, contudo,
aquelas paisagens eram tão naturais e críveis como qualquer
estímulo visual cotidiano.
Podiámos
vê-las e tocá-las, mas não nos era possível crer em nossos
sentidos. Tudo se completava e se desmentia diante de nossos olhos
incrédulos. Borges conhecia aquele lugar, e ali nos trouxera,
sorrateiramente. Ele sorriu, sugerindo uma condescendência amistosa
e cúmplice com nossa ignorância.
Após
este dia, nunca nenhum dos presentes retomou este assunto. Era como
um segredo compartilhado apenas com olhares que, caso revelado, seria
certamente tomado por uma alucinação coletiva. Embora repleto de
testemunhas, jamais poderia ser levado a sério. Tentei algumas vezes
voltar ao local, mas nunca reencontrei o caminho. Eu era apenas um
jovem, nos meu vinte e poucos anos, e minha memória relembra o
episódio como uma invenção fantástica, um sonho, uma paisagem
surreal criada pela minha cabeça, inalcançável, ininteligível.
Mas, apesar de tudo, ainda palpável.
Em
1949, uma década depois e no mesmo ano em que completou cinquenta
anos de idade, Borges lançou seu famoso livro de contos O Aleph.
Algumas coisas então começaram a se explicar.”
Findo
o relato, os presentes estavam estupefatos. Não acreditavam no que
acabavam de ouvir, mas o modo como foi contado fora tão eficiente
que chegou a convencê-los do contrário.
A
amizade entre os dois grandes escritores é sabida, mas a origem do
Aleph continua um mistério.
No
prólogo para a edição inglesa de 1970, Borges define este “objeto”
assim: “o que a eternidade é para o tempo o Aleph é para o
espaço”. No conto, o narrador o descreve como uma esfera de mais
ou menos três centímetros. Por outro lado, a fala de Bioy Casares
menciona paisagens concomitantes e, ainda por cima, palpáveis. Qual
das versões torna-se mais convincente?
Tomando
como premissa que o local descrito exista mesmo e tenha inspirado
Borges, é nítida sua intervenção literária ao transformá-lo em
uma esfera: um objeto sem início e sem fim que simboliza, de modo
esteticamente perfeito, assuntos caros à sua obra, como o infinito,
o absurdo, o fantástico.
E
Bioy Casares, teria querido brincar com o misticismo em torno do
célebre conto? Nunca saberemos o que realmente se passou: se a
verdade, uma invenção, uma brincadeira ou se foi apenas mais um
jogo literário de dois mestres, que viam a realidade como apenas
mais um dentre vários gêneros literários.
Bioy Casares relatou esta
história, pela primeira e única vez, em fevereiro de 1999. Em oito
de março do mesmo ano, veio a falecer. Eu, contudo, nunca estive em
Buenos Aires. Mas pude presenciar seu belo discurso. Apesar do tempo
que passou desde então, lembro-me como suas palavras soaram
verdadeiras, e provavelmente o eram. Não me recordo, contudo, se eu
estava diante de uma esfera ou de infinitas paisagens. A emoção do
momento abarcou minhas lembranças. Mas posso dizer, sem a menor
sombra de dúvida, que eu tinha o universo diante de mim.
(Imagem: Jacek Yerka - "Krysia's Garden")
Porra alemão! Pior que não li nada especificamente do Borges, mas tenho aqui o livro de diálogos Borges e Sabato, que é uma conversa entre os dois transcrita por um jornalista argentino. Fuck german!
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