quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Jogatina
Olhando de frente, vê-se dois prédios, um muito próximo ao outro. Vê-se que o da direita é mais antigo que o da esquerda e este, por sua vez, um pouco mais baixo que o primeiro.
A proximidade entre os dois prédios causa fenômenos no mínimo intrigantes. graças a isto, os apartamentos de baixo do prédio da direita não recebem nem um pingo de sol durante o dia (talvez algumas gotas com o sol a pino). E, por coincidência do destino ou por mera sacanagem do pedreiro, os apartamentos de ambos os prédios encaram-se frente a frente, sacada a sacada, janela a janela, na mesma altura. Se existir um voyeur entre os vizinhos, é o local indicado para bisbilhotagem anônima. A rotina escancarada elevada à última potência.
É ali onde eu, Zaratustra, habito. A minha caverna atual.
Recentemente mudou-se uma velhinha para o apartamento que fica em frente ao meu. Muito me fazem falta os antigos inquilinos, pois descobri que era dali que vinha o sinal wi-fi que eu emprestei por muitos meses. Infelizmente descobri somente quando sumiram.
Após alguns meses desocupado, mudou-se uma velha para o referido apê. Provavelmente não pode ou não gosta de pegar sol. Assiste pouca TV, e fuma bastante na sacada. Mas não vi nada disso. Quem me contou foi o voyeur do apê de cima.
Dias desses, distraído acabei por observar o apê da velhinha: ao redor de uma mesa redonda forrada com veludo verde, 4 ou 5 outras idosas, cada uma com muitas cartas em cada mão, sérias, numa jogatina ferrenha que deveria valer o ingresso para o baile da feliz idade. Não identifiquei o jogo, mas a coisa era séria, pois vi à tarde, saí de casa e voltei à noite e ainda estavam ali.
Não parece ser pôquer, ao menos não vejo fichas. Se fosse eu ia entrar na roda pra rapar a mesa das anciãs. Deve ser canastra ou pif. Sabe lá.
Seguidamente se reúnem, mas creio que ultimamente a coisa tem sido mais frequente. Anteontem ali estava, hoje também. Não me surpreenderia se estivessem há três dias seguidos ali, estáticas, uma tentando arrancar das outras a casa, o carro perdido na rodada anterior. Ou o ingresso pro camarote no baile de sexta à tarde.
Enquanto o mundo gira, a vida segue e outra rodada recomeça. O eterno retorno dos ases. Nesse momento porém uma percebeu que estou olhando... melhor disfarçar. Sob meus óculos escuros, às 23h, ninguém deve perceber que as observo.
Ela avisou as outras. Todas me encaram agora, com olhares ameaçadores. Mas velhinhas com olhares ameaçadores são sempre engraçadas, e me escapa uma risada. Agora mexem na bolsa. Devem procurar um guarda-chuva pra jogar em mim. Eu rio enquanto faço gestos imitando um jogo de cartas e abro mais uma cerveja.
Quando olho novamente, três armas na sacada apontando pra mim, a raiva pulsa em seus olhos. Meu último desejo?
Que a cerveja estivesse gelada.
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