sexta-feira, 10 de novembro de 2006
Surtos
A sala improvisada transformada em uma quase-biblioteca estava na penumbra, com as luzes apagadas. Da janela semi-aberta, um vento leve fresco soprava, dando ao ambiente uma temperatura agradável, que eximia ao seu ocupante a necessidade de ventiladores ou condicionadores de ar, mesmo em pleno janeiro. A cortina ondulava calmamente, como se uma cortina pudesse ter calma, e insetos perdidos regularmente esbarravam seus pequenos corpos voadores contra o vidro fosco, guiados pelo brilho do monitor que os atraía.
Na cadeira em frente ao computador, um escritor trabalhava calmamente, no silêncio, colocando e misturando as palavras, invertendo-as e transformando-as em outras. Era alta madrugada, morava sozinho e, como acontecia todas às noites, escrevia, às vezes para esquecer-se da vida, outras vezes para lembrar-se dela. Da vida. Distrair-se.
Bebericava um refrigerante, beliscava um salgadinho industrializado e escrevia. O teclado engordurado refletia em sua gosma as luzes do monitor. O monitor antigo, encardido, mesmo quando limpo, não se separava da sujeira, sua grande companheira. A sujeira era como algo de séculos, embora regularmente limpa a casa, impregnou-se de tal maneira que dava à sala o aspecto de descoberta arqueológica, não fossem os equipamentos modernos ali instalados.
Durante um surto de criatividade, que obrigou o escritor a ficar meia hora sem beliscar seus salgadinhos preferidos e seu refrigerante, durante esse meio tempo, ele ouviu um barulho. Parou. Olhou ao redor e, como não podia ser diferente, não encontrou ninguém. Voltou a escrever. Passados mais alguns instantes de continuação do êxtase literário, o barulho ocorre novamente. Analisou com calma, parecia um ronco, um bicho, algo assim, forte. Por acaso lembrou-se da TV ligada, contudo não atentou para o detalhe de que estava no volume mínimo, fato que, caso ocorrido, poderia ter mudado seu destino. Mas não mudou. Desligou a TV e, ao sentar-se, ouviu outra vez o bramido, mais próximo do que antes. Percorreu todos os cômodos da casa, fechou as janelas ainda abertas, examinou cada canto para conferir se alguém ou algum bicho havia entrado. Após estar certo de sua solidão, pegou uma faca - ele havia votado a favor do desarmamento no plebiscito, e gostava de mostrar-se coerente - e deixou-a ao seu alcance. Sentou-se, um tanto impregnado pelo medo, outro pela incerteza, e mais um pouco da certeza de que alguma coisa estava para acontecer.
Voltou a escrever. Quando pensava em ir à cozinha pegar outro pacote de salgadinhos, ao girar a cadeira, ouviu pela última vez o rugido, como um urro, mais alto e intenso, como um animal lançando-se ao ataque. Paralisado, consegue apenas olhar o rinoceronte que avança em sua direção, com o chifre apontando sua testa. Morreu de pânico, antes de ser perfurado pelo olho.
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